Trapaceiras

Artigos Oipinião

Por Sindia Bugiarda

Já na abertura do livro Confindent Woman, Tori Telfer nos avisa: você vai gostar dela. Ela vai convencê-lo a falar sobre sua história de vida, suas preocupações e conquistas. Vai ser fácil acreditar que ela é uma mulher abastada, importante, de classe, que esbanja sinceridade. E as 13 personagens que Telfer nos apresenta em seu livro são realmente muito envolventes.  Golpistas (con women) de distintos países, épocas e graus de sofisticação. Histórias reais, recolhidas entre 1756 e 2014, mulheres com habilidade especiais para manipular códigos sociais tais como etiqueta, protocolos, vestimentas. É assim que elas se inserem em um mundo ao qual não pertencem, o dos ricos. Fraudam, enganam, manipulam e seduzem, usam todas as armas que podem, nessa guerra silenciosa travada dentro de uma sociedade que parece temer tanto quanto odiar mulheres. Todas acabaram, em algum momento, desmascaradas e presas — algumas até mortas.

Mulheres confiantes é o título em português. Mas bem poderia ser Trapaceiras. Porque a trapaça implica em uma transgressão, um conhecimento prévio dos limites, da proibição, ou como diz Georges Bataille, do interdito. Ao invés de destruir a proibição, o trapaceiro a ultrapassa e a completa, ou seja, a reformula. É como se estivesse focado em produzir e detectar brechas enquanto a maioria de nos,  está assombrada com o tamanho do muro. Mais do que confiança, é preciso cultivar alguma curiosidade pelo titubeio, ir além da firmeza e dos passos determinados. Em Mulheres Confiantes nos mostra que é tremor dos pés que interessa, o desequilíbrio sustentado entre um passo e outro. 

As nossas trapaceiras

Em uma manhã de junho de 2007, Kelly Tranchesi atravessou o caminho de Gianpaolo Gelleni, nos Jardins, bairro nobre da Zona Oeste de São Paulo. Ele aguardava que o portão automático abrisse para entrar com o carro em sua residência. “Ela me chamou de Bruno, depois pediu desculpas e disse que eu parecia um amigo dela”, contou Gianpaolo ao jornal O Estado de S. Paulo. Um deslize? Um truque de cena? Coincidência, caso arquitetado ou só “azar” de Gianpaolo? Não se sabe. Os dois começaram a conversar, Kelly contou que era do Mato Grosso e que estava em São Paulo para estudar, por insistência do pai, dono de um bingo. Eles passaram a sair. Um dia, ele a convidou para ir ao Cafe de La Musique: “Pedi uma dose de uísque e apaguei”, contou o rapaz, que acordou na cama da própria casa.

Aos 31 anos, filho de uma família abastada, a mãe dona da Galeria Portal das Artes nos Jardins, Gianpaolo jamais pensaria que a jovem de 19 anos era uma trapaceira.  Dali até o desaparecimento de um quadro de Miró, avaliado em 37 mil dólares, não foram necessários muitos encontros, de acordo com o próprio rapaz. Mas é preciso sublinhar: nunca foi provado que Kelly roubou o quadro.  Ela nunca foi condenada por isso.

Contudo, não lhe faltaram acusações nas delegacias da capital paulista. Na maioria das vezes, feita por comerciantes questionando a utilização de cheques assinados por terceiros, com os quais ela pagava taxis, as diárias de hospedagens em quartos de hotel, ou comprava roupas caríssimas.  Se aqueles que assinaram os. cheques foram prejudicados, não tiveram coragem de fazer os boletins de ocorrência. Talvez para evitar ter seus nomes fossem divulgados. Afinal, Kelly tinha apenas 19 anos. Foi preciso que uma senhora de 83 anos fizesse denuncias contra Kelly para que a figura da estelionataria fosse criada. Socorrida pela jovem na rua, após passar mal,  a senhora deu falta de um de seus talões.  Novamente, sem provas, Kelly foi absolvida. 

A polícia paulista, contudo, seguiu incansável ao descrever Kelly da seguinte maneira: vestia roupas de marca caras e possuía objetos de grifes famosas, não possuía residência fixa, se hospedava em hotéis de luxo, que pagava usando cheques de terceiros. Usava quatro nomes diferentes: Kelly Lambertini, Kelly Tranchesi, Alessandra Tranchesi e Daniela Delgado Garcete. Os policiais lançaram também a suspeita de que ela poderia ser garota de programa, para justificar que ela frequentasse as residências dos homens que pareciam lhe entregar cheques assinados sem preenche-los. 

Outra hipótese, lançada por Gianapolo, foi que ela aplicaria o golpe “Boa noite Cinderela”, batizando a bebida de empresários, normalmente de meia idade, moradores de zonas nobres da capital, como Brookliyn, Vila Olimpia, Jardins e Itaim Bibi. Os pobres coitados se viam indefesos diante da quase adolescente. 

Como nos autos não havia um único depoimento de qualquer vítima que tivesse sido enganada ou seduzida ou induzida a erro por ação de Kelly, o juiz, Fernando Migliori Prestes, a absolveu por falta de provas. Nas palavras dele: Não consta nos autos um único depoimento de vítima que foi enganada ou seduzida pela ré (…)”. E o magistrado acrescentou ainda: “pergunta-se, o que a ré obteve ao colocar os cheques em circulação? A denúncia não narra (…) não há pagamentos ou bens materiais (…) nem há provas de que tenha bens adquiridos (…)”. Etc, etc, etc

Mas Kelly já havia sido julgada e condenada. Segundo as noticias divulgadas na imprensa, pesava contra ela: o português ruim, adquirido em reformatórios que atravessou durante a infância, o fato de ser jovem, bonita, inteligente, pobre, e  — para a mãe de Gelleni, Marina, — de não ter todos os dentes molares. “Sempre desconfiei, ela não tinha todos os dentes. Dava para ver quando ela sorria”, disse a socialite ao jornal Estado de S. Paulo. Sim, a moradora dos Jardins não se constrangeu em dizer que era possível medir a posição social de alguém pela quantidade de dentes que tem na boca. Do mesmo modo que se escolhia um escravo pelos dentes fortes durante o processo de escravização no Brasil.

Curiosidade, Gianpaolo é o único nome que aparece nas matérias acusando formalmente Kelly, provavelmente porque teve que acionar o seguro do suposto roubo do quadro. É provável que boa parte dos homens que estiveram com Kelly, se sintam honestamente envergonhados. Afinal, como iriam imaginar que sendo a maioria deles ricos, bem mais velhos e experientes, iriam se dar mal por assediar uma jovem saindo da adolescência. Devem ter se frustrado porque Kelly não cumpriu com o papel de vítima que lhe era destinado.  

Imagino que para tentar suavizar o embaraço causado por essa situação, Gianpaolo tenha confidenciado a um jornalista que escrevia uma coluna para Folha S.Paulo, que sofria as dores de separação recene, quando se aproximou de Kelly. O subtexto seria: ele estava frágil e foi drogado, quem não cairia numa emboscada dessas? Quando acordou, no dia seguinte, Gianpaolo já estava na cama de seu própria residência, com a moça dormindo ao seu lado. Naquela noite nada sumiu, ele conta. 

Gianpaolo parece ter gostado tanto da companhia de Kelly, que apesar da situação arriscada, a convidou para sair novamente. E foi nessa ocasião que Kelly teria roubado a gravura do famoso artista espanhol, que se encontrava numa moldura tão pesada que como Kelly mesmo costumava afirmar: “eu não tinha forças para erguer”. O Boa Noite Cinderela nunca foi provado, talvez por ser difícil explicar como a garota carregou o corpo do rapaz, sedado, do Café de la Musique até a sua  cama passando por porteiros, etc. 

Como dito acima, Kelly não foi presa por conta dessa acusação. Sua detenção se deu por conta de uma briga com a advogada, Yara Alves Brasil, que a acusou de não pagar R $4.000,00 de honorários. Kelly retrucou dizendo que a advogada lhe roubara roupas caríssimas, que não foram aceitas como pagamento dos honorários devidos e tampouco devolvidas. No momento em que Kelly foi a delegacia reaver as malas repletas de roupas de grife, ainda com etiquetas, teve sua prisão decretada pela delegada Aline Martins Gonçalves, do 15° distrito de Itaim Bibi. Essa prisão durou oito meses. Em 2008, a jovem foi absolvida por falta de provas. De lá para cá, foram mais três prisões. Em 2009, no Rio e em Barretos (SP), e a última, e em 2011 em Bebedouro (381 km de SP). Kelly seria absolvida das primeiras, pelo mesmo motivo, falta de provas. Mas na última acabou sendo condenada por não comparecer à audiência. Caso contrario teria permanecido em liberdade. 

É Kelly mesmo quem conta, em entrevista à Folha de S. Paulo, em 2011, que: “Fui absolvida (do roubo do quadro)”. Sobre o dinheiro que recebeu e cheques de outros que fez circular, pagando suas contas, ela declarou: “Confessar eu não confesso. Me acusaram, eu quero que provem.” E quando questionada sobre sua preferência por frequentar rodas das altas classes sociais, Kelly é bem direta: “Você não gosta de coisa boa, por acaso?”.

Que raridade topar com uma jovem como Kelly: arredia ou avessa a operações ingênuas, que se travestem de moral para proibir, e de afeto, para chantagear. Sinceridade, amor, fidelidade, franqueza são bons exemplos de qualidades cultivada nas mulheres que se tornaram riscos de morte, verdadeiros dogmas para regular relações. Não há muito sentido em buscar a verdade, ou perguntar se há ou não trapaça. Em nosso pais muitas mulheres, casadas inclusive, fazem sexo por um prato de comida. A luta pela sobrevivência é o elo que as liga a uma sociedade que silencia ou aceita que elas sejam humilhadas, violentadas, tenham a juventude sequestrada, sua liberdade negociada, e até mortas.

Kelly morreu em 2022, aos. 33. anos. Estava em Santa Catarina quando caiu da janela de um apartamento que ficava no 4°andar. A hipótese de suicídio foi divulgada nas redes. A história de Kelly Samara Carvalho dos Santos,  seu nome de batismo, marca em nossos corpos um recado muito claro: “não toleramos mulheres ambiciosas”. Porque uma mulher que gosta de coisas boas se torna perigosa. Desde os tempos medievais, a Igreja já nos dizia: a luxúria é o nosso “pecado original”,  por onde a malícia escorre. Kelly seria a encarnação desse feminino sombrio,  um “mau sinal”.

Porque a miséria pode justificar crimes, sejam eles de paixão ou de lógica. Por décadas, mulheres foram mortas ou estupradas em nome da honra. Homens podiam matar mulheres. Bastava dizer ela não o respeitava. Juristas entendiam que isso era aceitável e deixavam assassinos sairem ilesos. Crimes cometidos no calor de emoções, despertadas porque a mulher não respeitou o homem.  Por outro lado, para os crimes cometidos por mulheres só há agravantes. Um crime se agrava simplesmente por ser cometido por uma mulher.  Uma mulher sempre vai ser punida, especialmente se ela encontrar um modo revidar o ataque a altura.  das tentativas de ser explorada, a condenação vai ser sumária. Isso também é parte da miséria: fazer vistas grossas quando mulheres são exploradas não só por gringos, mas também por nativos, por familiares, parente, no ambito de sua intimidade. Nem ali a mulher esta segura. o pente-fino da moral e dos bons costumes, o que mais senão a miséria, faria uma mulher se sujeitar a fazer sexo por valores míseros? Assistimos isso acontecer com as prostitutas da Vila Mimosa, no Rio de Janeiro, por exemplo. O maior reduto do submundo da exploração sexual da capital fluminense movimenta mais de um milhão por mês. Enquanto as cerca de 3.500 profissionais anunciam em mesas de bares: vendo 30 minutos de sexo por R$ 40, uma hora por R$ 60 e sexo a três por R$ 40 (cada). Caso o programa com as duas prostitutas dure uma hora, o valor sobe para R$ 80 para cada uma. Esses valores foram anunciados em tabelas no período dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, quando muitas jovens já consideravam a situação desesperadora a ponto de aceitarem fazer sexo sem preservativo para não perder clientes.