Por trás do apelido sensacionalista e do escândalo midiático, a história de Adriana Ferreira de Almeida expõe não apenas as contradições morais de uma sociedade marcada pela A ambição feminina sob julgamento: o caso Adriana e René Senna
No Brasil, pobreza e desigualdade moldam não apenas o mercado de trabalho, mas também as relações afetivas e sexuais. Histórias como a de Adriana Ferreira Almeida, a “viúva da Mega-Sena”, e René Senna, ex-lavrador que se tornou milionário em 2005, expõem não só a precariedade social, mas também como a justiça e a opinião pública tratam de forma seletiva a ambição feminina.

Adriana tinha 24 anos quando conheceu René, um homem debilitado pela diabetes, quadro intensificado pelo alcoolismo. Uma ferida no dedão do pés esquerdo vivia encoberta de bichos. A falta de cuidado era tamanha que o levaria a amputar as duas pernas. Mas René nunca pararia de beber. Analfabeto, sobrevivia trabalhando como lavrador, açougueiro e após perder as pernas, vendendo doces em sinais.
O episódio da cesta básica
Após ganhar R$ 52 milhões na loteria em 2005, ele passou a assediar Adriana com mais entusiasmo. É verdade que não tinha uma boa aparência e tampouco apresentava cuidados básicos com a higiene pessoal, agora tinha um trunfo, o dinheiro. Segundo depoimento de familiares, depois de ganhar a Mega-Sena René foi até a casa de Adriana para entregar uma cesta básica. Na ocasião, ela se aproximou do carro e perguntou se ele não estava precisando de uma empregada. René respondeu que precisava era de uma mulher. E Adriana retrucou: “Serve eu? Casaram-se em 2006. A partir daí, Adriana assumiu tanto a casa quanto as finanças do casal.
O contraste de gênero é imediato. Se René fosse mulher, sua incapacidade de gerir os próprios bens seria presumida e a administração naturalmente passaria ao marido — sem que isso o desabonasse moralmente. Com Adriana, ocorreu o oposto: ao ocupar um espaço de poder, foi pintada como predadora. Sua rotina, roupas justas, cirurgias plásticas e hábitos de consumo foram usados como indícios de falta de caráter. Tornou-se a caricatura da “mulher fatal” enquanto René foi romantizado como “homem bom”, ingênuo e traído.
Pouco se falou sobre o alcoolismo que destruiu sua primeira família ou sobre as condições que o deixaram vulnerável. Toda cidade sabia do premio e mesmo assim, René ia sozinho para um bar com um triciclo recém comprado. Motivo de algumas discussões entre ele e Adriana. O silêncio em torno de suas fragilidades reforça a assimetria: quando o homem erra, seu histórico é apagado; quando a mulher ascende, sua ambição vira prova de culpa.
O episódio da cesta básica costuma ser narrado como a prova de que Adriana “se ofereceu” por interesse. Mas ele revela outra camada: a transformação da relação entre eles só foi possível depois da mudança de status social de René. Em outras palavras, foi o dinheiro que redesenhou os papéis — e o gesto de Adriana, em vez de ser entendido como fruto das relações de poder e da precariedade que a cercava, foi usado para reforçar a imagem de oportunismo.
Condenação e herança
Adriana foi absolvida em 2011, mas o julgamento foi anulado. Em 2016, foi condenada a 20 anos de prisão por ser considerada mandante do assassinato de René, executado por terceiros. Hoje cumpre pena em regime semiaberto, aguardando progressão para o aberto. Além da condenação penal, perdeu o direito à herança: o Superior Tribunal de Justiça a declarou “indigna”, excluindo-a da sucessão mesmo existindo testamento que a favorecia.
Enquanto isso, a disputa pelos bens segue em aberto. A fortuna de René já supera R$ 100 milhões e envolve imóveis, sítios, casas de praia e veículos. Foram apresentados quatro testamentos, três já anulados. Um deles previa metade para Adriana e metade para Renata, filha de René. Em 2024, a Justiça rejeitou pedido da viúva para restaurar um testamento antigo que a beneficiaria. Renata permanece como principal herdeira.
Curiosamente, a briga pela herança entre irmãos, sobrinhos e a filha do milionário não provoca escândalo moral. Apenas Adriana foi transformada em vilã pública, julgada não só por seus atos, mas por seu corpo, suas roupas e sua vontade de ascender socialmente.
Ambição feminina como transgressão
O pano de fundo dessa história é um país onde a exploração sexual é naturalizada — mulheres trocam sexo por R$ 40 em locais como a Vila Mimosa —, mas onde uma mulher que busca ascensão pelo casamento é punida como transgressora. É como se existisse apenas um lugar social permitido para as mulheres pobres: o da submissão silenciosa.

O julgamento de Adriana é, antes de tudo, o julgamento da ambição feminina. A mensagem é direta: homens podem desejar, conquistar e ostentar; mulheres que desejam são suspeitas. E, se ousarem alcançar, pagarão caro — com a liberdade, com a reputação e até com o direito de existir fora das grades da narrativa dominante.
