Musas. A coautoria fotógrafo-modelo como ampliação das possibilidades estéticas
O corpo do outro revela nossos segredos mais íntimos. Sobre ele incidem políticas de controle, dinâmicas das relações de poder, inscrevem-se valores e normas, estabelecem-se o jogo identidade-alteridade, determina-se o que é permitido e o que é interdito. Olhar para o corpo é, então, a possibilidade de ressignificar essa linguagem que fala dos conflitos e mazelas do homem e seu tempo.
Talvez por isso o nu seja vivido como tabu: do Gênesis Bíblico, que narra o primeiro ato de rebeldia humana, punido com a imposição de roupas e com expulsão do paraíso, até às dezenas os relatos de suspensão e encerramento de contas em redes sociais (Facebook) por publicações de nu, algumas de autores reconhecidos mundialmente, como Picasso ou Dali. Mas o que há de tão ofensivo, o que se desnuda em mim ao ver o outro nu?
Nosso palpite é que o nu evidencia uma tensão entre aquele que olha e aquele que é visto, entre o que a modelo oferece e o que o fotógrafo pode perceber, entre o que desejamos e o que podemos produzir. E esta tensão não é outra coisa senão o velho embate entre original e cópia, verdade e mentira, sujeito e objeto, eu e o outro, destruição e criatividade, o que nos faz enfrentar nossas ambivalências diante do ato de construir uma imagem: celebramos aquilo que nos dá acesso ao original, talvez relevo da ideia que temos do que somos, ao mesmo tempo em que condenamos a vã e muitas vezes imprecisa aparência que nos afasta do original.
Iconofilia e iconofobia, a imagem do corpo nu está carregada, simultaneamente, de tudo o que somos e de tudo o que não somos. E ao expressar afastamento e proximidade, ela nos põe em embaraço. É neste campo de batalha entre a imagem que produzimos do corpo e o corpo de carne e osso, que gostaríamos de pensar a constituição do nosso olhar. Priorizamos a interpretação em detrimento da presença: arredonda o corpo, me gritavam os fotógrafos, mulheres têm o corpo arredondado.

Fica claro que o ato de interpretar pode se tornar um filtro para nos proteger de nós mesmos. Diante do outro, do mundo daquilo que pode se apresentar a nós como diferença radical, deixando escapar a toda hora tudo o que não somos, por ter existência própria, se faz urgente a necessidade de domesticar através do ato e interpretar, que tomamos como um modo de compreender. Trata-se de uma operação que busca determinações essenciais, focamos naquilo que há de permanente nas coisas, que pode nos trazer a segurança e a concretude de uma verdade, numa vã tentativa de que o outro seja ancoragem e não o desconhecido no qual a experiência pode nos fazer emergir.
Mas e quando o outro não acontece, ultrapassando qualquer desejo de controle? Ao olharmos conseguimos saber que o que vemos não é o outro, mas uma ficção que fazemos dele? E que quanto mais respondermos a essas três perguntas – o que vejo? O que imagino? E o que sinto? – mais permitimos que a narrativa sobre nossa experiência seja escrita com o outro e não a despeito dele?
Perceber que o abismo entre eu e o outro é intransponível me leva a outra questão: Se o outro é sempre representado ou inventado, como nos livrarmos dessa espécie de paternalismo o que reduz a uma ficção empobrecida sem qualquer voz na criação de sua própria narrativa?
Assim, vem o próximo passo, (3) encarnar essa ficção, seja na literatura, na pintura, nas artes performáticas, ou na fotografia. Nosso palpite é que o exercício de ver o outro implica em produzir uma cartografia transversal de dissolução do ponto de vista do observador, desviando dos pressupostos objetivista e cientificista que impõe uma inteligibilidade, um modo de fazer. Desestabilizar as formas pela sua abertura, acompanhar mudanças de posição, de aceleração, de velocidade, de ritmos. Atenção aberta e sem foco, que não busca uma informação, mas uma sintonia fina com o objeto. Ver com os ouvidos, ser tocado por aquilo que nos olha. Sustentar o abismo, o intervalo, tornar o tempo turvo, impuro, esburacado, múltiplo, residual. Perceber os movimentos fantasmas, ouvir os desvios criados pelas falhas sísmicas, as fraturas do perceber. Ceder a tentação do abismo, aceitar, escrutinar, deixar a razão sofrer o deslocamento criado por rupturas, por proliferações dos grãos da diferença na engrenagem das repetições. Lançar-se no hiato dos anacronismos, na malha de buracos da memória. Intrincar e separar os fios, ou as serpentes da meada dos tempos. Caminho que percorre a impressão para encarnar. Falha que separa um símbolo de seu sintoma. Lidar com as nhacas do ver e ser visto, matéria dos recalcamentos, do ritmo após o fato. Colocar-se disponível ao olho do redemoinho, dos turbilhões do tempo (DIDI HUBERMAN, 2002).

Essa é das coisas mais difíceis na sessão de nu, abrir-se a relação modelo-fotógrafo. Diante do outro se faz urgente a necessidade de reduzir suas complexidades, domesticar seus mistérios. Porque o outro pode nos destruir. A diferença é contagiosa, sendo uma doença. Quando o outro nos acontece, ele ultrapassa qualquer querer, qualquer fazer. E talvez esse ponto explique por que numa sessão de nu, quando temos fotógrafo diante da modelo, os processos de reprodução tenham tanto sucesso e os processos criativos sejam facilmente reprimidos.
Diante do espelho ou do duplo que é o outro, emerge a tábua de salvação do igual, do mesmo, há algo de insustentável nessa situação. E não se trata somente de uma mulher nua e um fotógrafo com uma câmera nas mãos, estamos diante do abismo comum a todos nós, intransponível. Paradoxalmente trata-se da ponte entre eles que é o olhar, o perceber, o corpo cheio de poros abertos, vulnerável. É um ato erótico que não pode ser delimitado a sexo ou amor. Estamos diante de uma força, talvez uma das únicas capazes de resistir ao efeito homogeneizador da demanda pelo igual que nos põe fechados em nos mesmos. Falo do impulso fundamental que motiva a busca pela vida e pela vitalidade. Estar diante dele pode ser insuportável.
Por conta disso, fiz um recorte para tratar da minha experiência com o nu: as musas. Quero falar sobre um dos trabalhos mais intensamente idealizados que existem. O trabalho das musas. Reza a tradição que as musas não eram vistas, eram sentidas. Sussuravam aos ouvidos dos poetas e músicos. Segundo a mítica mais consagrada, às Musas eram filhas de Zeus e de Mnemosine (deusa que personificava a memória), associadas, consequentemente, à preservação do passado e à manutenção da organização social (cf. Krausz, 2007, p. 21).
Inspiradoras dos aedos, detentoras de sabedoria não humana, as Musas promoviam a conexão entre o mundo dos homens e o mundo divino. O imaginário das Musas fertilizou longa e amplamente a tradição literária e artística do ocidente, tornando-se um tropo cultural recorrente, frequentemente expresso na figura feminina que inspira o processo de criação artística.

Contudo, quando penso em musas me vem a minha memória, por exemplo:
Barbara Graham (Robert Wise. I want to live, 1958). Considerada uma mulher de vida fácil, promíscua e infratora das leis desde a adolescência. Vivia entre alguns criminosos boêmios da década de 50 da Califórnia, Oakland, onde nasceu. Condenada a pena de morte, foi executada por um crime que não cometeu no dia 03 de junho de 1955.
Em sua primeira noite na prisão, queriam lhe obrigar a despir-se da lingerie que trouxera, vestindo em troca a camisola do presídio, alegando que seus trajes eram provocativos. Ela despiu-se da lingerie e disse que preferiria dormir nua, ao que lhe devolveram o traje. No corredor da morte se recusou a permitir que lhe fizessem a revista, e quando a carcereira lhe disse que tinha que seguir as normas ela lhe respondeu: vão me ameaçar com o que agora?
Sabina Spielrein (David Cronenberg, A Dangerous Method, 2012 baseado no livro homônimo de John Kerr). Considerada esquizofrênica, sofria abusos do pai, e foi parar na clinica Bergholzli, em Zurique, Suíça, no dia 17 de agosto de 1904, onde Carl Jung trabalhava. Spielrein foi sua amante e influenciou não somente seu trabalho como adiantou em mais de 8 anos Teoria das pulsões (1920) de Freud, ao elaborar o conceito de pulsão de morte ou de destruição no texto “A destruição como causa do devir” (1912). No texto ela esboça uma relação entre o instinto sexual e o instinto de morte. Questionando o raciocínio de Freud, ela se pergunta: se o desejo sexual surge de um desejo simples para o prazer, por que a ânsia é tantas vezes reprimida com sucesso? Ela então faz uma analogia ao impulso de destruição e autodestruição e a ideia de perder-se no outro. Se pensarmos a sexualidade como fusão, perder-se no outro, destruição da individualidade, seria adequado pensar que o ego sai em defesa e resiste automaticamente a esse impulso. Por razões mais egoístas do que sociais. E assim, talvez a sexualidade exija a destruição do ego. O oposto do que Freud defendia.
Andree Heuschling (Gilles Bourdos, Jérôme Tonnerre, Mochel Spinosa, Renoir, 2012). Foi a ultima modelo de Renoir. Tinha 17 anos quando bateu na porta de sua casa no sul da França, durante a primeira Guerra Mundial. Renoir contava então com 74 anos e já estava muito fragilizado pela artrite. Casou-se com o filho do pintor, o diretor de cinema Jean Renoir, e veio a ser sua musa, estrelando em vários de seus filmes. Dizia que era preciso agarrar tudo, não ter medo de nada. Eu quero tudo. As mulheres que moravam com Renoir ficaram perturbadas e condenaram o fato de Andree exigir receber pelo trabalho como modelo.
Todas haviam sido modelos e amantes do impressionista. Achacavam-na dizendo que uma de suas modelos preferidas nunca havia exigido receber para posar ou para limpar a casa, ou cuidar das crianças ou ser sua amante. Não sou uma criada, respondia Andree, e ouvia em resposta: aqui, começa-se como criada e termina-se como modelo. Ou entra-se como modelo e termina-se por criada. Numa ocasião Andree quebrou toda a louça valiosa da casa, pintada por Renoir, enquanto gritava em resposta ao destino que lhe era apresentado: Eu, não! Chamaram-na de louca, e lhe determinaram outro destino, tão impiedoso quanto: um hospício. Renoir a reconheceu como uma de suas melhores modelos. A carne! É só o que importa! Dizia o velho pintor. Se não se entende isso, não se entende nada, nem da vida, nem da pintura. Repreendia o filho que escolhia voltar ao front, depois de passar meses se recuperando de uma lesão ao invés de ficar ao lado de Andree.
_ Vá estraçalhar sua carne, seu imbecil. Ou se preferir, vá matar um alemão fumando cachimbo. Se você acha que isso mudará alguma coisa.
Jean viveu ao lado de Andree de 1919 até 1931. Teve uma carreira de sucesso. Já sua musa parou de fazer filmes quando se separaram e morreu no mesmo ano que ele (1979) esquecida e no anonimato.
Lou Andreas Salomé (Codula Kablitz-Post, Lou, 2016) . Não basta dizer que encantou Nietzsche, Paul Rée, Freud e Rainer Maria Rilke. Para saber do que ela pensava importa citar o conhecido texto:
Ouse, ouse, ouse tudo! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar a sua vida a modelos. Nem queira você mesmo ser modelo para ninguém. Acredite: a vida lhe dará poucos presentes. Se você quer uma vida, aprenda a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer! Não defenda nenhum princípio. Mas algo bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima, como o fogo da vida!
Todas essas mulheres são consideradas musas. E acho que posso dizer também que eram mulheres intempestivas. Não se identificavam plenamente com o seu tempo, justo por uma diferença, uma defasagem, um anacronismo, conseguiam não só captar e enxergá-lo, mas erguiam um espelho diante de si, fazendo questão de se manter ao lado dos outros. E nesse espelho elas e os outros não viam somente os seus reflexos, mas eram impelidos a se descobrirem, a se reinventarem, e a reinventar o presente.
E assim elas acabavam afirmando o desejo, Eros, não como falta, mas como possibilidade de dar conta de algo que lhes rosa as entranhas, o desenho pela vida. Diferente das musas que vivam no Monte Olimpo com Apolo, que lhes garantia juventude e belezas eternas, seus corpos pereciam, seu grande poder consistia em pisar no chão, envelhecer, morrer ou ser assassinada, precisar de dinheiro, vender o corpo por hora e afirmar muito mais a transpiração do que inspiração.
Elas eram claramente uma ameaça a normalização do corpo. Gosto de pensar que o modo com que viveram suas vidas diz sempre da pergunta: alguém espera colocar ordem no caos que constitui essa variação infinita e amorfa, que encarceramos na palavra humano?
Problema da normalização do corpo feminino na sociedade
Trabalhei durante 12 anos com nu artístico no Rio de Janeiro. Nesse período aprendi q a musa deve, em primeiro lugar:
(1) manter uma abertura afastada, para criar desvios ao responder a demanda do artista por uma essência de mulher. Ela deve se manter afastada inclusive de si mesmo. Deve ter a coragem de perceber que não há verdade na mulher, e que justo esse afastamento abissal da verdade, essa não-verdade, é a verdade. Pode-se dizer que a mulher é o nome dessa não-verdade da verdade.
É assim que a musa opera, por dentro e a distância, quanto ela se furta a própria identidade de mulher, quando ela aprende a manejar o punhal: se ela é a verdade, sabe que não há verdade, que a verdade não tem lugar e que não é possível apropriar-se da verdade. É mulher na medida em que não crê na verdade, nisso que ela é, nisso que se crê que ela seja, e que, portanto, ela não é. Porque a verdade pode ficar nua na sua frente, mas não se deixa conquistar.
E aqui se opera o segundo ponto (2) que aprendi enquanto musa, se o artista crê nesta verdade que é mulher, se crédulo e dogmático, crê tanto na verdade quanto na mulher, ele não entendeu nada de verdade e nem de mulher, não possui nem a capacidade, nem a vontade de se vingar. E poderia uma musa soçobrar aos ouvidos do artista se este não acreditasse em sua capacidade de manejar um punhal contra ela?
Gosto muito de citar o trecho do diálogo do filme “La Belle Noiseuse” de Jacques Rivette (1991), baseado no livro “Obra Prima Desconhecida de Balzac”. No livro, um grande pintor, Frenhofer, já em final de carreira, possui uma grande obra inacabada, o retrato de uma cortesã chamada Catherine Lescault, obra a qual se dedica há dez anos. A inspiração para terminar vem quando ele conhece a amante de um jovem pintor que vai visitá-lo em seu ateliê. Gillette é oferecida como modelo pelo próprio amante, Poussin. A troca é simples, Poussin quer ver Catherine Lescault e Frenhofer quer uma musa. No filme Gillette passou a se chamar Marianne.
O diálogo entre o pintor e a modelo:
_ Vou quebrar você em pedaços. Vou colocar você fora de seu corpo, fora de sua carcaça.
_ Você já tem feito isso.
_ Você acha? Você acha que vou aceitar o que está me dando? Eu quero saber e ver dentro de seu corpo.
_ É por isso que não posso me mover de maneira alguma?
_ Quando pequeno, eu gostava de colocar meus brinquedos em pedaços. Quero ver. Quantas modelos exauri até deslocar seus ossos? Uma vez coloquei os ombros de Liz fora do lugar.
_ Agora é minha vez!
_ Vamos, não estou te machucando. O corpo todo, não somente algumas partes. Não me importam seus seios, suas pernas, seus lábios. Quero mais, quero tudo. O sangue, o fogo, o frio. Tudo o que está dentro do seu corpo. Vou pegar tudo, vou tirar tudo para fora de você, colocar dentro de um frame\tela. Preciso saber o que há dentro, embaixo de sua fina superfície. Quero o invisível… Não, não é isso. Não sou eu que quero, é a linha, a pincelada. Ninguém sabe o que é a pincelada. Eu estou depois disso. Estou correndo, correndo… Onde estou indo? Para o céu? Por que não? Por que não poderia uma pincelada explodir o céu?
_ Como você quiser. Estou de saco cheio.
_ Apenas começou. Não mais peito, não mais estômago, não mais coxas, não mais bunda. Um turbilhão! As galáxias, as mares, as correntes, buracos negros.
_ Você é podre.
_ Não sou nada, não estou fazendo nada. Não quero nada, lhe falei. É a pintura… E você e eu estamos apenas envolvidos. Vai ser um turbilhão, uma catarse, uma tempestade. Mais rápido mais rápido. Até você não ser nada, não sentir nada. 1º de março, 2º de março, 3º de março. Seus ouvidos não estão zunindo?
_ Não tenho orelhas, não posso sentir meu corpo.
_ Muito bem, nem eu posso. É quase isso, quase.
A criação não se dá de outra maneira, é justamente por dentro da relação entre a modelo e o artista que a possibilidade de abrir noções dadas por uma sociedade se coloca. A inspiração se dá durante a sessão, não antes, mas no acaso, e ela exige muita concentração e trabalho. O fotógrafo precisa observar, mudar o ângulo, experimentar movimentos, perceber a diferença entre uma postura e outra, é quase uma dissecação, porque é preciso esvaziar tudo. A destruição não é simplesmente uma força negativa ou patológica, mas sim um aspecto necessário do processo pelo qual surgem novas formas de vida e expressão. A destruição pode ser vista como um tipo de criatividade “negativa”, um processo pelo qual as estruturas existentes são rompidas e novas possibilidades são abertas.
A inspiração não é algo sacro, transcendente ou fora do mundo, mas justamente o que escapa e faz escapar da produção dos corpos.
Transpiração, o outro como destino.

“Não era a vaidade que a atraia para o espelho, mas o espanto de descobrir-se”. Essa frase de Milan Kundera extraída do livro A insustentável leveza do ser (1984) pode ser uma boa provocação para pensar o trabalho de nu e a construção da imagem.
Descobrir-se é refazer-se, usar o exterior como espelho diacrítico, constituir-se através de uma relação com o fora, o outro como destino. E é por dentro desta relação entre modelo e artista que gostaríamos de pesquisar como a imagem é construída.
Didi Huberman nos dá uma pista quando afirma que: “O que vemos só vale, só vive aos nossos olhos pelo que nos olha”. O que vemos também nos olha. E o que nos olha tem a capacidade de ativar memórias que talvez sozinhas sequer lembrássemo-nos de tê-las vivido. O brilho do mar que lembra a mãe moribunda de Ulisses vomitando. Os objetos como memória externa ao nosso corpo, um corpo com próteses cotidianas para dar conta de tudo o que vivemos no instante em que vivemos. Todo exercício de composição de imagem trata deixar morrer modos de perceber par que outros possam se inaugurar, reaprender a perceber. Nós nos desnudamos ao olhar o corpo do outro.
E é esse o maior desafio: deixar morrer, lidar com nossa realidade mais concreta – nosso corpo de antigas certezas se fazendo em linhas, profundamente perturbadoras e desestabilizadoras. A sensação de perda de si e desorientação, a urgência de novas formas, cadências que não para-me interferir no corpo social, penetrando na vida cotidiana, micro-poder ou sub poder. Do mesmo modo que não se pode possuir a verdade ou as musas, não se possui o poder, se exerce poder. Não se trata de propriedade ou coisa, ninguém detém estados do ser, não é algo que se pode tomar ou dar, ganhar ou perder. Não está localizado em nenhum lugar específico, e ainda assim, atinge a todos. Nos une e nos separa no próprio conflito que o inaugura. Sendo campo de correlação de forças, ele não é transcendente, mas imanente a outros tipos de relação (cognitivas, econômicas, sexuais).
Nesses 12 anos atuando como modelo, passei a produzir intervenções diretas sobre o trabalho do fotografo, organizando workshops, e é com base nessas experiências que posso afirmar: ao tirar a roupa, a modelo é vestida por identidades que respondem a décadas sobre o que é o erotismo, a sensualidade, a sexualidade, sobre o que é a própria mulher. Essas identidades poderiam ser atualizadas no encontro da modelo com o artista, contudo, a ideia de que ao invés de construir a imagem, o fotógrafo a captura, prende a imagem numa espécie de camisa de forças que impede movimentos destoantes aconteçam ou sejam percebidos de outro modo que não num exercício de enquadramento.
Aqui se evidencia o poder disciplinar sobre nossos corpos, o quão forte é o poder de adestramento, de extorsão de nossas forças, e do crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade. A arte como verdadeira instituição disciplinar, tanto quanto as fábricas, hospitais, escolas, prisões. É aqui também que as musas não encontram espaço para existir, são banidas da relação, como na passagem de A Odisseia em que Ulisses se amarra ao mastro para ouvir o canto das sereias sem correr o risco de sofrer sua influência. Mas se é por dentro da relação entre a modelo e o artista que esse mecanismo de poder se materializa nos corpos dos sujeitos – afirmando a arte como técnica de controle, procedimento-disciplinar: anátomo-política do corpo humano, adestrando o gesto, regulando o comportamento, normalizando a percepção – também é aqui que tudo pode ser desfeito. É aqui que nossas musas encontram terreno fértil para retornar.
Por isso, a primeira coisa que peço ao artista quando diante da modelo ou apenas analisando uma imagem é descrever o que ele vê, dizer o que imagina diante do que vê e o que sente. São ferramentas da filosofia da percepção de John Searle, que ajudam a perceber a enorme distância que existe entre artista e modelo, entre o que ele vê, imagina e sente, e aquilo que a modelo traz inscrito em seu corpo e muitas vezes expressa num gesto.
Então, por mais que o artista tente a repetição do mesmo no eterno e conhecido esforço de capturar o objeto, isso não basta, porque o trabalho do fotógrafo\artista, especialmente com o nu, implica em relançar um olhar sobre o ser humano, ou seja, sobre si mesmo. Pensar-se intempestivamente, agir ao invés de reagir, atravessar noções que arrastam e aprisionam, ter coragem de se comprometer com um presente sem se submeter a ele.
A distância entre ação e reação é simetricamente proporcional à distância entre criar e reproduzir. E provocar ações exige que nos desviemos e\ou atravessemos as reações, os ressentimentos para criar algo. E não há outro modo de atravessar a reação\reprodução/ressentimento, os signos definidos e dados, se não nos abrirmos a experiência de destruição pode ser vista como um momento em que o indivíduo é forçado a confrontar os limites de sua própria subjetividade e a se envolver com o desconhecido. Esse é um modo de rachar as palavras, rachar as coisas, abrir o corpo. E é aqui que a relação do fotógrafo\artista com a modelo assume o lugar de campo de pesquisa e experimentação.
O retorno das musas

Voltemos às Musas, o abismo da verdade como não-verdade, da propriação como apropriação, da declaração como dissimulação, essa oscilação indecidível entre dar-se\dar-se para, deixar-se tomar\apropriar-se. Dom-veneno. Isso que Nietzsche chama de o não-lugar da mulher.
Jules Michelet – A Feiticeira (página 137)
Então surgiu a joia delicada do diabo, a pequena feiticeira. Concebida da Missa Negra em que a grande desapareceu, floresceu em malícia, em graça felina. Era toda o inverso da outra: fina, oblíqua, dissimulada, a deslizar mansamente, encolhendo os ombros. Nada de titânico, por certo. Longe disso, de natureza baixa. Lúbrica e cheia de maus apetites desde o berço. Ela expressará toda a sua vida em um certo momento noturno, impuro e turvo; nele, certo pensamento, de que se teve horror durante o dia, se aproveitara das liberdades do sonho.
Aquela que nasceu com esse segredo no sangue, essa ciência instintiva do mal, que viu tão longe e tão baixo, não respeitará nada e nem ninguém neste mundo, não terá religião. Nem dirigida ao próprio Satã, pois ele ainda é um espírito. Essa aqui tem um gosto único por tudo o que é matéria.
Criança ela emporcalhava tudo. Crescidinha, bonita, espantava pela sujeira. Com ela a feitiçaria será não sei que cozinha de não sei que química. Desde cedo ela manipula sobretudo as coisas repugnantes; hoje drogas, amanhã intrigas. É esse – os amores, as doenças – o seu elemento. Será uma refinada mediadora entre amantes, hábil, atrevida, intuitiva. Haverão de combatê-la por conta de pretensos assassínios, pelo uso de venenos. Erroneamente. Ela tem pouco o sentido dessas coisas, pouco gosto pela morte. Sem bondade, ama a vida, ama curar, prolongar a existência. É perigosa em dois sentidos: venderá receitas de esterilidade, talvez de aborto. Por outro lado, de imaginação desregrada, libertina, de bom grado ajudará a queda das mulheres com suas beberagens malditas, gozará com os crimes do amor.

Ah, como essa é diferente da outra! É uma industrial. A outra foi o Ímpio, o Demônio, foi a grande revolta, a mulher de Satã, e podemos dizer sua mãe. Pois ele cresceu dela, de sua força interior.
Essa, porém, é no máximo a filha do Diabo. Tem duas coisas dele: é impura e gosta de manipular a vida. É seu quinhão; nele é uma artista, artista já comercial, e entramos no ofício.
Dizem que se perpetuará pelo incesto, de que nasceu. Mas ela não precisa disso. Sem homem produzirá incontáveis crias. Em menos de cinquenta anos, no início do século XV, sob Carlos VI, um contágio imenso se espalha. Todas as que acreditam ter alguns segredos e algumas receitas, todas as que se pensam capazes de adivinhar, todas as que sonham e viajam sonhando, todas se dizem favoritas de Satã. Toda lunática se atribui esse nome grandiloquente: Feiticeira.

Bibliografia
CASTRO, Viveiros. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac&Naify, 2015.
DERRIDA, Jacques. Esporas: os estilos de Nietzsche. Rio de Janeiro: Nau, 2013.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A pintura encarnada. São Paulo: Escuta, 2002.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Campinas: Unicamp, 2012.
KRAUSZ, Luis S. As musas: poesia e divindade na Grécia arcaica. São Paulo: Edusp, 2007.
MICHELET, Jules. A feiticeira. Rio de Janeiro: Ground, 2020.
RICHEBACKER, Sabine. Sabina Spielrein: de Jung a Freud. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
