Parte III – Jineteiras

Em Cuba, chamam-nas de jineteras. Referência a mulheres (mas também a homens, os jineteros) que, em troca de dinheiro, oferecem afetos, inclusive sexuais. A palavra é usada como sinônimo de prostituição, mas abarca práticas sofisticadas de extorsão, algumas vezes travestidas de relações corriqueiras. O termo também inclui o crime de turismo sexual. É difícil compreender o que é o jineterismo. Para isso, consultei o pesquisador colombo-venezuelano Jeudiel Martínez:“É um espectro. Tem pessoas que praticam a simples prostituição, tem aquelas que são escorts de gringos e os acompanham simulando relacionamentos, tem aquelas que seduzem gringos para sair da ilha… o conjunto dessas práticas é o jineterismo.” Algumas jineteras cobram dos estrangeiros por hora; outras os acompanham por dias ou semanas, e só então recebem pagamento. Há ainda intercâmbios mais complexos, como as que, valendo-se da beleza, seduzem clientes para conseguir ajuda para sair da ilha ou, na impossibilidade disso, para viver em condições melhores. “O conceito de jinetera se expandiu. Significa prostituta, mas, por extensão ou metonímia, virou termo para designar práticas de intercâmbio de sexo e afeto por dinheiro. Não se trata de um golpe. Se dão golpe em gringo, o governo vai punir muito severamente. Não tem espaço pra isso em Cuba, é um Estado policial”, conta Jeudiel, que ao visitar o país de Castro experimentou na pele a dificuldade de escapar da teia de sedução das jineteras:“Escolhi mudar de rua para evitar passar pelo corredor de mulheres. Sabia que seria difícil recusar”, lembra. Muitas tentam seduzir descrevendo suas especialidades sexuais. Se a primeira reação é rir, Jeudiel logo corrige: “Imagina o desespero da pessoa para fazer isso?”. Difícil discordar da imagem de desespero que ele desenha, especialmente quando pensamos na miséria crescente no Brasil. Se é puro desespero ou se é escolha, a resposta não cabe aqui. O que cabe é a aproximação entre a jinetera e o malandro carioca: “Ela se aproveita da vulnerabilidade (paixão) do gringo para tramar como sair da ilha ou obter favores. Basicamente é prostituição, embora o relacionamento possa ser real ou não. É algo ambíguo”, conclui Jeudiel. Esse nome especial, jineteras, segundo o Dicionário da Real Academia Espanhola, deriva de jinete e jinetear: realizar negócios ilícitos com estrangeiros para obter moeda forte; e também mulher que exerce a prostituição com clientes estrangeiros. Ou seja, aplica-se tanto ao malandro que sobrevive de cambalachos quanto àquele que vende o corpo — sempre e somente para estrangeiros. No romance Las Criadas de La Habana, Pérez Sarduy narra, pela perspectiva feminina, um encontro sexual: “quando trepava em cima deles era como se estivesse montando um cavalo e lhes dizia que ficassem tranquilinhos, que agora era ela que iria começar a jinetear.” O verbo se refere não só ao cubano como cavalo xucro e indômito, rebelde contra a domesticação pelos yanquis imperialistas, mas também ao malandro escolarizado que usa lábia, beleza e inteligência para montar nos gringos e obter tudo deles. De todo modo, o jineterismo tornou-se metáfora por excelência das relações entre Cuba e o mundo exterior. E, no universo feminino, as jineteras não são exclusividade da ilha. Quem não conhece, entre nós, a figura da mulher sozinha que sustenta filhos e mãe com a prostituição? Mercados inteiros funcionam sobre essa lógica. Prova disso é a Vila Mimosa, um dos mais famosos centros de prostituição do Brasil. Ali, a discrepância é gritante: movimenta-se cerca de um milhão de reais por mês, enquanto os programas custam entre R$ 40 e R$ 70. Até 2015, essa região notívaga carioca, entre a Praça da Bandeira e São Cristóvão, abrigava 150 comerciantes. A engrenagem do faturamento mensal eram, sem dúvida, as garotas de programa, que chegavam a lucrar R$ 700 por dia. As cerca de 70 casas do polo recebiam mais de 4.000 visitas diárias. O fenômeno empresarial mostrou que não só as famílias das profissionais lucram com a indústria do sexo: bares, estacionamentos, lanchonetes, salões de beleza, oficinas mecânicas, lavanderias, táxis e ambulantes também dividem até hoje a clientela desse sub-bairro da zona norte.

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Parte II – A “Viúva da Mega-Sena” ou o julgamento das ambições femininas no Brasil

Por trás do apelido sensacionalista e do escândalo midiático, a história de Adriana Ferreira de Almeida expõe não apenas as contradições morais de uma sociedade marcada pela A ambição feminina sob julgamento: o caso Adriana e René Senna No Brasil, pobreza e desigualdade moldam não apenas o mercado de trabalho, mas também as relações afetivas e sexuais. Histórias como a de Adriana Ferreira Almeida, a “viúva da Mega-Sena”, e René Senna, ex-lavrador que se tornou milionário em 2005, expõem não só a precariedade social, mas também como a justiça e a opinião pública tratam de forma seletiva a ambição feminina. Adriana tinha 24 anos quando conheceu René, um homem debilitado pela diabetes, quadro intensificado pelo alcoolismo. Uma ferida no dedão do pés esquerdo vivia encoberta de bichos. A falta de cuidado era tamanha que o levaria a amputar as duas pernas. Mas René nunca pararia de beber. Analfabeto, sobrevivia trabalhando como lavrador, açougueiro e após perder as pernas, vendendo doces em sinais. O episódio da cesta básica Após ganhar R$ 52 milhões na loteria em 2005, ele passou a assediar Adriana com mais entusiasmo. É verdade que não tinha uma boa aparência e tampouco apresentava cuidados básicos com a higiene pessoal, agora tinha um trunfo, o dinheiro. Segundo depoimento de familiares, depois de ganhar a Mega-Sena René foi até a casa de Adriana para entregar uma cesta básica. Na ocasião, ela se aproximou do carro e perguntou se ele não estava precisando de uma empregada. René respondeu que precisava era de uma mulher. E Adriana retrucou: “Serve eu? Casaram-se em 2006. A partir daí, Adriana assumiu tanto a casa quanto as finanças do casal. O contraste de gênero é imediato. Se René fosse mulher, sua incapacidade de gerir os próprios bens seria presumida e a administração naturalmente passaria ao marido — sem que isso o desabonasse moralmente. Com Adriana, ocorreu o oposto: ao ocupar um espaço de poder, foi pintada como predadora. Sua rotina, roupas justas, cirurgias plásticas e hábitos de consumo foram usados como indícios de falta de caráter. Tornou-se a caricatura da “mulher fatal” enquanto René foi romantizado como “homem bom”, ingênuo e traído. Pouco se falou sobre o alcoolismo que destruiu sua primeira família ou sobre as condições que o deixaram vulnerável. Toda cidade sabia do premio e mesmo assim, René ia sozinho para um bar com um triciclo recém comprado. Motivo de algumas discussões entre ele e Adriana. O silêncio em torno de suas fragilidades reforça a assimetria: quando o homem erra, seu histórico é apagado; quando a mulher ascende, sua ambição vira prova de culpa. O episódio da cesta básica costuma ser narrado como a prova de que Adriana “se ofereceu” por interesse. Mas ele revela outra camada: a transformação da relação entre eles só foi possível depois da mudança de status social de René. Em outras palavras, foi o dinheiro que redesenhou os papéis — e o gesto de Adriana, em vez de ser entendido como fruto das relações de poder e da precariedade que a cercava, foi usado para reforçar a imagem de oportunismo. Condenação e herança Adriana foi absolvida em 2011, mas o julgamento foi anulado. Em 2016, foi condenada a 20 anos de prisão por ser considerada mandante do assassinato de René, executado por terceiros. Hoje cumpre pena em regime semiaberto, aguardando progressão para o aberto. Além da condenação penal, perdeu o direito à herança: o Superior Tribunal de Justiça a declarou “indigna”, excluindo-a da sucessão mesmo existindo testamento que a favorecia. Enquanto isso, a disputa pelos bens segue em aberto. A fortuna de René já supera R$ 100 milhões e envolve imóveis, sítios, casas de praia e veículos. Foram apresentados quatro testamentos, três já anulados. Um deles previa metade para Adriana e metade para Renata, filha de René. Em 2024, a Justiça rejeitou pedido da viúva para restaurar um testamento antigo que a beneficiaria. Renata permanece como principal herdeira. Curiosamente, a briga pela herança entre irmãos, sobrinhos e a filha do milionário não provoca escândalo moral. Apenas Adriana foi transformada em vilã pública, julgada não só por seus atos, mas por seu corpo, suas roupas e sua vontade de ascender socialmente. Ambição feminina como transgressão O pano de fundo dessa história é um país onde a exploração sexual é naturalizada — mulheres trocam sexo por R$ 40 em locais como a Vila Mimosa —, mas onde uma mulher que busca ascensão pelo casamento é punida como transgressora. É como se existisse apenas um lugar social permitido para as mulheres pobres: o da submissão silenciosa. O julgamento de Adriana é, antes de tudo, o julgamento da ambição feminina. A mensagem é direta: homens podem desejar, conquistar e ostentar; mulheres que desejam são suspeitas. E, se ousarem alcançar, pagarão caro — com a liberdade, com a reputação e até com o direito de existir fora das grades da narrativa dominante.

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Mulheres lutam pela permanência da Casa Almerinda Gama

Protesto em frente ao Palácio Guanabara denuncia despejo da Casa de Referência Almerinda Gama. A Casa já acolheu mais de 200 vítimas de violência doméstica. Ana* procurou a Casa de Referência Almerinda Gama em desespero. Sua filha, de 10 anos, havia sido violentada por um adolescente próximo da família. O abuso só veio à tona uma semana depois, quando a menina se queixou de fortes dores no baixo ventre. Internada, precisou de tratamento emergencial para prevenir doenças e lidar com complicações físicas.“Quem me conhece sabe que cuido bem dos meus filhos. Jamais imaginaria que algo assim pudesse acontecer dentro da minha casa”, disse Ana, aos prantos. Sem rede de apoio, perdeu temporariamente a guarda da filha. Histórias como a dela atravessam os corredores da Almerinda Gama desde 2022, quando o espaço — fruto de uma ocupação organizada pelo Movimento Olga Benário — passou a funcionar como abrigo autogestionado para mulheres em situação de violência doméstica. Localizado na Rua da Carioca, 37, o prédio estava abandonado havia oito anos. Desde então, mais de 200 mulheres encontraram ali orientação jurídica, acompanhamento psicológico e apoio social oferecido por profissionais voluntárias. Na quarta-feira, mulheres, crianças e idosas caminharam do Largo do Machado até o Palácio Guanabara, em Laranjeiras, para denunciar a ameaça de despejo do espaço. A prefeitura quer retomar o prédio para implantar o projeto “Rua da Cerveja”, anunciado em agosto pelo prefeito Eduardo Paes. Em cima do carro de som, os relatos se alternavam: “Com baixo custo e serviços voluntários, mostramos que é possível oferecer ajuda real. O fator econômico não é só um deflagrador da violência, mas também o que mantém muitas mulheres presas nesse ciclo.” O estado do Rio de Janeiro possui apenas três casas-abrigo públicas para mulheres vítimas de violência. A Almerinda Gama, com recursos limitados e sustentada pela solidariedade, tornou-se símbolo de resistência. O risco de seu fechamento escancara a precariedade das políticas públicas de proteção a mulheres em situação de vulnerabilidade. *Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.

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O fantasma

Fantasma é uma aparição que vive entre o real e o imaginário, num Limbo, região que de acordo com o catolicismo se localiza entre o Céu e o Inferno, onde as almas de crianças que não foram batizadas e as dos pagãos virtuosos encontram-se. Fantasmas pertencem ao imaginário; são impalpáveis reflexos, vultos que atravessam paredes.

O dicionário diz que fantasma é uma imagem ilusória, uma falsa aparência, medonha, apavorante, que pode ser alguém que morreu e reaparece, mas também pode ser objeto ou som ligado a essa pessoa morta. Fantasmas são frutos da imaginação, só existem na fantasia de quem os vê, são simulacros.

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