Ouvir o silencio

As mãos dançantes estão em toda parte. Quem passa na Rua das Laranjeiras, Zona Sul do Rio, logo percebe. Pontos de ônibus, lanchonetes, bares, lá estão elas a nos hipnotizar. A cadência dos movimentos destoa do barulho atordoante de carros e buzinas do acentuado trânsito do final de tarde. Seguindo-as, chegamos até o Instituto Nacional de Educação de Surdos, o INES. A primeira escola de surdos do Brasil foi criado em 1857 por um francês, também surdo, chamado Eduard Huet.

Durante o primeiro ano de existência, o INES funcionou na Rua dos Beneditinos, no ano seguinte mudou-se para o Morro do Livramento, em seguida para o Palacete do Campo da Aclamação, depois para a Chácara Laranjeiras, e por fim para a Rua Real Grandeza. Somente em 1877 foi transferido para a Rua das Laranjeiras e em 1890 para o atual prédio, no numero 232. Por fora, a imponente construção amarela nem parece uma escola pública, onde estudam 600 dos quase seis milhões de surdos do país. Esse número corresponde 1,2 por centos dos surdos do Estado do Rio de Janeiro.

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Mulheres indomáveis, corpos a domesticar: o horror cinematográfico da bruxa

Na Idade Média, o corpo da bruxa foi imaginado como fonte de terror e signo de um feminino incontrolável, monstruoso e sempre em contato com uma exterioridade assustadora. No cinema, as bruxas cumpriram frequentemente tal papel, fazendo parte de uma galeria de outros monstros comuns, como os vampiros, os fantasmas e os zumbis. O objetivo deste trabalho, porém, é analisar um conjunto de filmes recentes nos quais a figura da bruxa emerge também como potência de libertação e criação, fazendo do feminino uma condição-limite sempre aberta à mudança e ao novo.

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Mulheres lutam pela permanência da Casa Almerinda Gama

Protesto em frente ao Palácio Guanabara denuncia despejo da Casa de Referência Almerinda Gama. A Casa já acolheu mais de 200 vítimas de violência doméstica. Ana* procurou a Casa de Referência Almerinda Gama em desespero. Sua filha, de 10 anos, havia sido violentada por um adolescente próximo da família. O abuso só veio à tona uma semana depois, quando a menina se queixou de fortes dores no baixo ventre. Internada, precisou de tratamento emergencial para prevenir doenças e lidar com complicações físicas.“Quem me conhece sabe que cuido bem dos meus filhos. Jamais imaginaria que algo assim pudesse acontecer dentro da minha casa”, disse Ana, aos prantos. Sem rede de apoio, perdeu temporariamente a guarda da filha. Histórias como a dela atravessam os corredores da Almerinda Gama desde 2022, quando o espaço — fruto de uma ocupação organizada pelo Movimento Olga Benário — passou a funcionar como abrigo autogestionado para mulheres em situação de violência doméstica. Localizado na Rua da Carioca, 37, o prédio estava abandonado havia oito anos. Desde então, mais de 200 mulheres encontraram ali orientação jurídica, acompanhamento psicológico e apoio social oferecido por profissionais voluntárias. Na quarta-feira, mulheres, crianças e idosas caminharam do Largo do Machado até o Palácio Guanabara, em Laranjeiras, para denunciar a ameaça de despejo do espaço. A prefeitura quer retomar o prédio para implantar o projeto “Rua da Cerveja”, anunciado em agosto pelo prefeito Eduardo Paes. Em cima do carro de som, os relatos se alternavam: “Com baixo custo e serviços voluntários, mostramos que é possível oferecer ajuda real. O fator econômico não é só um deflagrador da violência, mas também o que mantém muitas mulheres presas nesse ciclo.” O estado do Rio de Janeiro possui apenas três casas-abrigo públicas para mulheres vítimas de violência. A Almerinda Gama, com recursos limitados e sustentada pela solidariedade, tornou-se símbolo de resistência. O risco de seu fechamento escancara a precariedade das políticas públicas de proteção a mulheres em situação de vulnerabilidade. *Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.

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O fantasma

Fantasma é uma aparição que vive entre o real e o imaginário, num Limbo, região que de acordo com o catolicismo se localiza entre o Céu e o Inferno, onde as almas de crianças que não foram batizadas e as dos pagãos virtuosos encontram-se. Fantasmas pertencem ao imaginário; são impalpáveis reflexos, vultos que atravessam paredes.

O dicionário diz que fantasma é uma imagem ilusória, uma falsa aparência, medonha, apavorante, que pode ser alguém que morreu e reaparece, mas também pode ser objeto ou som ligado a essa pessoa morta. Fantasmas são frutos da imaginação, só existem na fantasia de quem os vê, são simulacros.

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Na cama de outro

Minha confissão causou um colapso na minha existência, assim como a realidade que se fixa quando observada. Repousei o livro sobre a cama, a atenção se interiorizou em acusações e explicações que nunca seriam possíveis. Vaguei no interior de um átomo e feito os elétrons de Niels Bohr, vi a verdade saltar descontinuamente entre consciência e razão. De repente, quando menos esperava, ela escapuliu num motim há muito ensaiado que uníssono me açoitava: adúltera!

Traí uma relação de nove anos, pesava-me a razão. Contudo não me traí, rebatia a consciência. Adultério é aquilo que acontece quando nos recusamos a ouvir o que o corpo tem para dizer. Adultério, ad alterum torum, palavra que vem do latim e significa na cama de outro. Na cama de outro apunhalei pelas costas o que eu era, bicho morto, renasci. 

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