Encontro Marcado

Reportagem

Encontro Marcado

Por Sindia Santos

 

A morte não marca data para chegar. Com Alírio não é assim; nos último 13 anos ela sempre chega, ao menos uma vez por dia. Exceto naquela sexta-feira 13 de outubro; naquela noite chuvosa ninguém morreu em Guarujá.

Sentado na cadeira do escritório da única funerária particular da cidade, Alírio acende mais um dos 50 cigarros que costuma fumar num plantão; às suas costas 43 caixões empilhados, ao seu redor paredes brancas enegrecidas pela umidade, que silenciosa arruína o concreto e impõem ao ar um cheiro não aceito pelos pulmões.

Alírio é agente funerário e desde 1993 aprendeu sua principal tarefa; passar algumas horas do dia e da noite a esperar. Esperar até que ela ataque; daí Alírio não espera mais, age.

_ A morte busca uma pequena distração e quando o sujeito relaxa, ela lhe muda a vida, encerrando-a.

Feito o mitológico Caronte, Alírio caminha com a morte, auxiliando suas vitimas na transição do rio da aflição, mas ao invés de atravessar os mortos, Alírio ajuda os vivos a enfrentar essa passagem.

_ Penso que não é somente um corpo, mas a imagem de um pai, marido, filho, avô que esta ali, a minha frente.

Os momentos finais de uma vida serão escritos com o auxílio do agente funerário. Como num caderno de caligrafia, Alírio capricha na letra ao empunhar um chumaço de algodão ensopado numa mistura de éter, cânfora e formol. Com muita calma, toda a pele é percorrida em busca de resposta para as perguntas: Há machucados? Perfurações de seringa? Cortes? Houve necropsia? A falta de atenção nessas horas pode trazer problemas que não serão resolvidos com a solução.

_ De que adiante tapar um vazamento num velório, se os familiares já teriam sofrido ao ver que o ente está na verdade apodrecendo.

A morte e a esposa ciumenta

Lidar com a morte é mascarar a realidade. E esta pode ser muito indigesta, feito o amor que perde a emoção com o casamento. Depois de quatro separações e cinco filhos, Alírio aprendeu com mansidão e objetividade a lidar com o incompreensível.

_ Quando o amor perde a graça, simplesmente viro a página e vou embora só com as roupas do corpo. Com mulher tem que ser assim, a gente não pode se apegar muito. A morte é feito esposa ciumenta e vingativa, se a gente bobeia, não há segunda chance.

Quase foi assim com a baiana Judete, sua primeira esposa. Alírio ainda morava em São Paulo, no bairro São Miguel, trabalhava como motorista entregando azulejos por toda a cidade. Casado há seis com uma mulher 12 anos mais velha, optou por não ter filhos. Numa noite, cansado do trabalho, Alírio foi para casa, não antes de passar no bar para a costumeira partida de bilhar regada a cerveja. Judete estava em pé na pia da cozinha, preparava o jantar. Alírio foi para o quarto, deitou-se na cama, olhos fechados.

_ Quando os abri, a ponta da faca estava lá, ao alcance do meu rosto. Só tive tempo de me esquivar. Foi uma questão de reflexo. Foi sorte.

Há 15 anos Alírio está no litoral, permanece aqui por causa de Rosangela, sua atual esposa, 10 anos mais nova e mãe de três de seus filhos.

_ Não lhe faço segredo, digo que não gosto de mulher me cobrando nada.

Logo após Rosangela veio o trabalho na funerária.

_ O engraçado é que quando morava em São Paulo, costumava buscar sossego caminhando por cemitérios, olhando as campas dos mortos. Nunca imaginei que um dia fosse cuidar deles.

O dízimo

A intimidade com a morte, fez Alírio crer na sua suscetibilidade em nossa existência. Sobre sua mesa, está o dízimo que o faz suportar essa crença: caixas de ranitidina, um comprimido a cada 12 horas para diminuir a acidez estomacal; e dipirona, ingerida a cada oito horas para afastar a terrível dor de estomago causada por uma úlcera, operada em 2004.

_ Era dia dos pais, levantei cedo como de costume, dava plantão na funerária. Tomei banho, preparei um chá de erva-cidreira, bebi, depois tomei dois dedos de café, só para fumar, foi quando senti aquela dor. Minhas mãos suavam. Um amigo, que na época trabalhava no mesmo prédio da funerária, me levou ao hospital, o Santo Amaro mesmo. O médico disse que precisava operar, a ferida havia perfurado meu estomago. “Amanha, então, doutor? Não, hoje mesmo, agora”.

Da operação, Alírio guarda um corte vertical de 17 centímetro, que lhe divide a barriga ao meio e o aproxima dos corpos necropsiados; além das restrições alimentares que o fizeram perder todo o gosto por comer.

_ Sou baiano e não posso comer mungunzá, vatapá, caruru; não posso comer nada com pimenta e bem temperado. É mais fácil dizer que não posso comer.

Nas 24 horas em que durou o seu plantão, Alírio só parou uma vez para fazer um lanche num bar em frente à funerária. O que a primeira vista pode parecer um sacrifício, não é nada para quem faz viagens de 15 horas ininterruptas.

_ Quando alguém de outro estado morre aqui na cidade, alguns de seus familiares contratam nossos serviços. Daí, viajo eu e o corpo. A mais longa que fiz foi para a Bahia, 3.400 quilômetros, mais de 24 horas ida e volta.

A longa distância exige maiores cuidados com o morto. Para chegar com saúde e enfrentar mais 24 horas de velório, o corpo é embalsamado. Não há empresas especializadas nesse trabalho em Guarujá, o serviço fica por conta do auxiliar de necropsia do IML, Sergio Aredes Bonilha. Trata-se e um rito de conservação à moda antiga; retira-se os órgãos, o sangue, e todo o corpo é formolizado.

_ Quando o morto chega ao seu destino final, a pele esta parecendo couro de sapato de tão seca.

Para o morto parecer vivo

Alírio sabe que há técnicas de conservação menos grotescas, como tanatopraxia, termo que nasceu da junção de duas palavras gregas, thánatos, que significa morte; e prâksis, que quer dizer, ação, o fato de agir. Nela todo o sangue é extraído do corpo pelas artérias e substituído por substancias que visam barrar a decomposição.

_ Não há cortes nesse procedimento, o sangue é retirado por meio de bombas e seringas.

À tanatopraxia se unem a necromaquiagem e a reconstrução facial. As três juntas conseguem fazer do ritual pós-morte um verdadeiro dia da noiva.

_ São práticas pouco utilizadas na região. No dia-a-dia a intenção é conservar o corpo só para o tempo em que durar o velório.

Então, ao invés do embalsamar, Alírio recorre a um pó coagulante que é injetado na boca e nariz para solidificar os líquidos que estão próximos dessa região. Assim os indesejáveis e poucos cheirosos vazamentos ficam contidos por cerca de 24 horas.

Em seguida, o morto é vestido e a necromaquiagem não passa de uma base cuja função é retirar a cor de cadáver do cadáver. Por fim, vêm as flores; Calábrias e Crisântemos são desencaixadas do talo e postas, uma a uma sobre o corpo do morto. Somente as partes do peito e da cabeça ficam visíveis.

_ Faço isso há muitos anos, e se há algum sentido que não seja o de fazer o morto parecer vivo, ele se perdeu. As tradições não têm significados nos dias de hoje. Há alguns anos, estava num velório na capela do cemitério da Vila Julia, no Guarujá.

Volta e meia, durante a cerimônia, via um rapaz passar soando um sino. No final perguntei para ele o motivo, “Até hoje não sei o porquê”, foi a resposta.

Alírio atravessa a rua e entra no Café Central atrás de um maço de Malboro. Não existe ritual fúnebre; a vida é um ritual, onde não sabemos por que fazemos o que fazemos ou por que fazemos como fazemos; sem questionar, apenas fazemos.

Caro Data Vermibus

Já passava das 22h00s, feriado prolongado, a Rua Deputado Emílio Carlos apresentava um atípico movimento de carros que aos poucos foi arrefecendo. Desde as 19h00s, Alírio olha, contempla e espera. Depois do cigarro, vem o café e entre um e outro, programas de teve. Na Discovery famílias enfrentam problemas com casas mal assombradas, cujos espíritos tentam roubar-lhes a vida; ou então, médicos travam intricadas lutas com a morte e sua aceitação.

Os olhos de Alírio apertam-se no rosto magro e miúdo, que se aconchega num vão entre o dedão e o restante da mão direita. O braço apoiado nas pernas cruzadas eram a sustentação do corpo junto ao suporte da cadeira estofada verde.

As feições não guardavam sinal de entusiasmo ou desânimo, os lábios se omitiam, escondendo-se por baixo do bigode que apresentava alguns fios grisalhos.

_ Sabe qual o significado da palavra cadáver? Carne dada aos vermes. Uma coisa muito ruim de acontecer, mas já estaremos mortos mesmo.

Oficialmente, a palavra cadáver vem do latim cadere, tombar, cair para não mais levantar. A argumentação de Alírio também vem do latim, CAro DAta VERMibus, mas é pouco aceita pelos filólogos porque somente a partir do século 20 começaram a surgir vocábulos extraídos de siglas e de iniciais. Trata-se de mais uma lenda; outra vez, o fantástico se sobrepõe a realidade no que tange a morte.

Feito criança em final de festa, o ser humano tende a não aceitar o encerramento de seus dias. Nesse instante, o corpo é o único elo entre a vida e a morte, entre a realidade e a fantasia, entre a mentira e a verdade.

Sem perceber e talvez num raro instante, o corpo é aceito como algo importante. Tal qual discípulo de Nietzsche, aquele que fica deixa de fazer a separação entre matéria e espírito e enquanto vela, percebe que toda a existência do ente querido se resume em lembranças e àquele corpo; a alma, feito o coração e os demais órgãos, apenas deixou de funcionar.

_ Lembro que num feriado desses tive que levar o corpo de um rapaz de 26 anos e sua filha de cinco para a Vila Alpina, no cemitério de São Pedro, ao lado do crematório. Acidente de carro. Enquanto preparava os corpos, os familiares chegaram. A mãe do rapaz me perguntou umas cinco vezes se era certo dele estar morto. Depois me pediu para ajeitar-lhe as costas com cuidado, pois ele sempre teve muitas dores, noutro momento ficou preocupada com a roupa que lhe trouxera porque ele costumava sentir muito frio. Por duas vezes, arrumei a neta no caixão e por duas vezes, ela retirou a menina de lá, como se os seus abraços pudessem fazê-la acordar.

Às vezes, o tempo pára na funerária, são frações de segundos em que o silencio invade o local, o ponteiro do relógio cresce e os instantes se abrem, a madrugada se aproxima.

Revendo a Teoria dos Instintos

_ Quem tem medo da morte, tem medo de viver.

Alírio vai contra a teoria dos instintos de Freud. Para o agente funerário, quanto mais o ser humano vive, mais se aproxima da morte e quanto mais intensa for a sua experiência, maior é a probabilidade de morrer.  O instinto que leva a vida (Eros) é o mesmo que leva a morte (Thánatos).

A teoria de Alírio se baseia nos dias de férias e feriados. Esses são os períodos em que as mortes aumentam. Não só por causa do crescente número de turistas que passa a freqüentar a região, mas também porque belos dias de sol são convites à vida. O resultado são afogamento, homicídio e ataques cardíacos.

_ As pessoas relaxam, comem demais, bebem demais, exageram em tudo, menos na prudência, porque querem se divertir demais.

A coisa já é diferente se o dia está chuvoso. As pessoas tendem a não sair de casa, os inimigos não se encontram e não há porque se matarem.

Nas idéias de Alírio, a morte é feito um deus cujo ritual para ser chamado pede uma única ação, viver, não há moralidade na sua existência. Não se trata de um castigo ou premio.

_ Costumo dizer que coisa ruim não acontece somente com os outros.

A afirmação do pai encontrara eco dois dias atrás, na voz do filho Alex, o menino de 13 anos, que falava da morte com olhar divertido e curioso.

_ Ele não nos deixa comer e em seguida dormir e nem dormir de barriga para cima. Comer e dormir dá congestão e a barriga para cima causa pesadelo.

Apesar de a derradeira hora estar envolta em lendas irascíveis, ela não se configura como inimiga do menino, antes é uma aliada que o faz se sobressair na multidão. Já fora o motivo de brigas na escola.

_ Os moleques tem mania de chamar meu pai de papa defunto. Daí, bato para valer neles.

_ Eu nem ligo, aliás, são poucos os amigos que sabem da profissão de meu pai.

Renan é o irmão de 14 anos de Alex. Eles estavam na funerária na tarde do dia 11, acompanhavam o final do plantão do pai.

Enquanto Alex mal podia conter-se em si mesmo, Renan era mais calmo, observador, quase introspectivo. Eles auxiliavam o pai na limpeza dos seis gigantescos castiçais utilizados nos velórios. Os artefatos ainda estavam quentes, o que produziu um bom material para as brincadeiras dos meninos, que afundavam os dedos num resquício de parafina; essa ao esfriar formava fina pele a esconder-lhes as digitais.

Os irmãos não mascaravam o orgulho nascido da coragem de lidar com algo que muitos evitavam ver. Envaidecidos, contavam que já auxiliaram em várias preparações de corpos.

_ Ajudamos na parte das flores.

O relógio entrava na segunda metade das 18h00s quando o telefone tocou, uma senhora, 90 anos, morreu às 17h40. Alírio entrou na perua branca da Volkswagen e se encaminhou para o Asilo, que ficava na Estrada de Pernambuco.

_ Não gosto de pôr a mão em defunto do outros. Os plantonistas que me substituírem ajeitarão o corpo no caixão.

Morrer custa caro

 

A madrugada se esvai, manhã do dia 14, no mundo lá fora, os carros e as pessoas põem-se lentamente em movimento. Feito um caixão, os vidros da funerária protegem Alírio, que vive anacronicamente sem pressa.

_ Entra aqui, mãe Deusa.

Uma mulher negra, gorda de cabelos grisalhos e em desalinho sorri, mostrando as placas de ouro por detrás dos caninos. A blusa verde e a saia comprida preta se mexem de um lado para o outro, acompanhando o andar de pingüim da senhora enlutada.

_ Só vim pagar o caixão do meu marido, morreu há dois dias.

O senhor branco, alto e gordo que a chamara minutos atrás, entrou no escritório. Lá, dormia o proprietário da funerária, Somallio Velardo, mais conhecido como Marinho.

_ O moço é amigo do Marinho. Afirmou Alírio enquanto a senhora sentou-se e pôs-se a esperar. Minutos depois, empunhando um cheque, entrou no escritório, pagou o que devia e se foi no mesmo táxi que a trouxera.

Após o despertar de Marinho, Alírio inicia a limpeza do estabelecimento. Um pano com álcool retira todo o pó das duas mesas do escritório, em seguida sua atenção volta-se para o chão de piso negro que é varrido com certo cuidado. Um abraço frouxo retira o enorme buquê do balde e o coloca noutro cuja ágüe é fresca. Um a um, os quatro baldes sofrem essa mudança. Por fim, os 18 caixões à mostra na vitrine são limpos e ilustrados com óleo de peroba.

_ O mais barato custa uns R$ 1.300 e o mais caro R$16.000. Paga-se mais uns R$300,00 para velar e enterrar, essa taxa vai se alterar dependendo do cemitério; isso fora a campa, cujo preço vai se alterna entre sete e vinte mil. É caro morrer.

Ritos fúnebres

Enterrar, cremar, ungir, velar, os ritos fúnebres vão variar de religião para religião. Mas qualquer que seja a crença, elas pedirão disciplina e regras, não por mera tradição, mas por sobrevivência.

_ Cada vez mais, as pessoas dão menos valor a esse costume, talvez pela incapacidade de lidar com o incompreensível.

De tanto observar a morte em ação, Alírio chegou à conclusão de que ela traz consigo a destruição de laços familiares e sociais, que serão refeitos com o auxílio dos rituais fúnebres.

_ O agente funerário pode fazer com que os vivos tenham um contato com a morte suave e também pode fazer dessa experiência algo brutal.

Ajudar nesse processo implica em compreender. Cristãos, islamitas, judeus, budistas, cada um crê numa filosofia e cada uma delas tem uma explicação para a morte.

_ Os judeus, por exemplo, não aceitam que cuidemos de seus mortos. Eles o banham e o enrolam em várias camadas de lençóis, além do xale de oração. O caixão é dos mais simples e eles acham desrespeitoso mantê-lo aberto durante o velório.

Alírio entende os judeus, mas a sua formação católica, não o deixa simpatizar com os muçulmanos.

_ Eles vêem o velório como uma burocracia a ser cumprida. Não velam, querem enterrar o mais rápido que puder, parecem não ligar para o morto. Uma vez, o filho de um senhor muçulmano morreu aqui, no Guarujá, preparei o corpo do garoto e tive que o levar para São Paulo. O pai não queria participar do enterro. Disse assim para mim: Então, o senhor leva o corpo e deixa com os coveiros? Respondi que não, que ainda havia taxas de velório e enterro a serem pagas, achei desumano o comportamento dele.

Há também aqueles que colocam dentro do caixão vários pertences do morto, feito os antigos egípcios.

_ Já me deram um relógio rolex num saquinho. Sabia que ele não usaria, mas coloquei, né, fazer o quê?

A morte não tem mistérios

Nos plantões seguintes, a funerária recebeu várias chamadas para recolher corpos pela cidade, num mês fazem mais de 100 recolhas. Quase todos são enterrados pela funerária municipal, que oferece caixões de graça sem a necessidade do atestado de pobreza.

Enquanto seu plantão não chegava ao fim, naquela tarde de sábado, Alírio se pôs na recepção, sentado na cadeira sintonizava musicas na FM, depois se voltava para A Tribuna, lia todo o jornal, inclusive a sessão de falecimentos.

_ Grande parte dos mortos tem bastante idade, mas no jornal de hoje tem uns com 26, 30, 31. Não é bonito quando as pessoas vivem até os 80, 90 ou 106 anos, com vi num dia desses? Não, a morte não apresenta grandes mistérios, já a vida…