Mulheres indomáveis, corpos a domesticar: o horror cinematográfico da bruxa

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Seção: Cinema

ID – 43013

Revisado por: Poá Comunicação

 

Mulheres indomáveis, corpos a domesticar: o horror cinematográfico da bruxa

 

Indomitable women, bodies to domesticate: the witch’s cinematic horror

 

Mujeres indomables, cuerpos para domesticar: el terror cinematográfico de la bruja

 

Erick Felinto[1]

orcid.org/0000-0003-2613-5774

erickfelinto@gmail.com

 

Sindia Bugiarda[2]

orcid.org/0000-0002-5228-5568

sindiamariasoares@gmail.com

 

Resumo: Na Idade Média, o corpo da bruxa foi imaginado como fonte de terror e signo de um feminino incontrolável, monstruoso e sempre em contato com uma exterioridade assustadora. No cinema, as bruxas cumpriram frequentemente tal papel, fazendo parte de uma galeria de outros monstros comuns, como os vampiros, os fantasmas e os zumbis. O objetivo deste trabalho, porém, é analisar um conjunto de filmes recentes nos quais a figura da bruxa emerge também como potência de libertação e criação, fazendo do feminino uma condição-limite sempre aberta à mudança e ao novo.

 

Palavras-chave: bruxas; corpo; cinema; horror; imaginário.

 

Abstract: In the Middle Ages, the body of the witch was imagined as a source of terror and the sign of an incontrollable feminine, always monstrous and in contact with a frightening exteriority. In films, witches have consistently played that role, joining a gallery of other common monsters, such as vampires, ghosts, and zombies. However, the aim of this work is to analyze some recent films that represent the witch also as a power for freedom and creation, depicting the feminine as a limit-condition always open to change and novelty.

 

Keywords: witches; body; cinema; horror; imaginary.

 

Resumen: En la Edad Media, el cuerpo de la bruja fue imaginado como fuente de terror y signo de un femenino incontrolable, monstruoso y siempre en contacto con una exterioridad asustadora. En el cine, las brujas jugaran con frecuencia tal papel, como parte de una galería de otros monstros comunes, como los vampiros, los fantasmas y zombies. El objetivo de este trabajo es, todavía, analizar un conjunto de filmes recientes en los cuales la figura de la bruja emerge también como una potencia de liberación y creación, haciendo del femenino una condición-límite siempre abierta al cambio y al nuevo.

 

Palabras clave: brujas; cuerpo; cinema; horror; imaginario.

 

Introdução

 

Houve um tempo, séculos e séculos atrás, em que não se duvidava de existências que não tinham lugar definido ou determinado, que habitavam os territórios limítrofes entre a vida e a morte, entre os homens e os espíritos, entre a razão e a loucura, o real e o mistério, o animado e o inanimado, o conhecido e o desconhecido, o explicável e o inexplicável, o compreensível e o incompreensível. Essas eram existências que, embora constituídas por sangue, suor, secreção, músculos e carne, se abriam também a um exterior misterioso, que as expunha à intromissão de forças desconhecidas, bem como à experiência de um permanente estado de ameaça e risco. Este artigo parte de uma meditação sobre tais existências em suas manifestações no período medieval para, posteriormente, conectar certo imaginário contemporâneo do feminino à figura da bruxa, conforme expresso no domínio midiático – campo no qual os imaginários sociais transparecem com marcada clareza. Desse modo, seu foco principal é entender como tais representações são reestruturadas, em tempos recentes, no domínio audiovisual. A intenção é dupla: trata-se de delinear alguns aspectos desse corpo condenado e banido do meio social em determinado momento histórico para, em seguida, analisar sua reconfiguração atual no espaço imaginário do cinema, na expectativa de que esse percurso ajude a compreender as razões do assombro que levaram a seu banimento, bem como as potencialidades, filosóficas e culturais, que tal corpo pode trazer.

Trataremos o corpo da bruxa como um objeto profundamente cinematográfico, no qual se reúne o maravilhamento com o monstruoso às potências de um feminino excessivo e incontrolável. De modo mais específico, almeja-se mapear esse corpo em três filmes, todos lançados nos últimos anos, e cujo tema é uma figura feminina misteriosa e assustadora que viveu em diferentes lugares da Europa e da América. O primeiro deles, The Witch. A New-England Folktale, lançado em 2015, teve como fonte primária documentos do século XVII, empregando inclusive citações inteiras de jornais e diários para recriar, com cuidado exaustivo, a sensibilidade puritana da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos. O segundo, Hagazussa: A Heathen’s Curse (2017), se passa em uma remota comunidade nos Alpes alemães no século XV. A palavra Hagazussa vem do alto-alemão antigo (ou estágio inicial da língua alemã, convencionalmente do ano 500 até 1050), e dela derivam palavras como Hag ou Hex. Era usada para se referir às mulheres que habitavam o limite entre as terras cultivadas e a floresta selvagem. Finalmente, o terceiro filme, Gwen, de 2018, se passa na Snowdonia durante o século XIX, uma das montanhas mais altas do país de Gales. Como nos filmes anteriores, Gwen é baseado em folktales, que evidenciam tradições e crenças populares. Os três retratam mulheres enfrentando determinados territórios hostis pela força da vida selvagem em diferentes períodos históricos. É impactante vê-las atravessando invernos severos, a aridez dos ventos dos Alpes, a escassez de alimentos, várias doenças, injustiças, ressentimentos e mortes. Assim, este artigo tenta também dar conta de um irresistível desejo por existências constituídas em territórios-situações limite, nos quais a morte, o perecimento, o apodrecimento, a loucura e as doenças não eram ainda encerradas em instituições e banidas do convívio cotidiano. Em certo sentido, é essa condição limítrofe, excepcional e assustadora que leva à classificação de tais existências femininas como bruxas em algum momento nos filmes.

 

Estrutura do corpo feminino medieval

 Por onde começar? Por um momento histórico de fundamental condenação do ser feminino, constituído como fonte de corrupção e terror durante todo o medievo. De espírito e corpo frágil, a mulher é fraca, sua vontade não tem força, seu corpo a torna vulnerável, mais propensa à influência dos espíritos descorporificados. Por ser fraca, encontra modo fácil de se justificar através da malícia: toda malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher, diz o Eclesiastes (25: 26). Vulnerável ao fora, ao exterior, o mundo a coloca em convulsão, lhe muda a direção com facilidade, porque a mulher é filha do vento, instável, imprevisível, ligada à natureza, ao sexo e ao prazer. Tentadora do homem, ela é aquela que perturba sua relação com a transcendência. Não é prudente confiar em uma mulher, já que pela violência do parto, ela se avizinha das bestas, dos animais: sangue, secreção, instinto, dor, o corpo da mulher se metamorfoseia. E, ao gestar, a vida muda a forma de seu corpo e, portanto, adquire a habilidade de enganar, distorcer, mentir: “falsa em pernas, falsa em coxas, falsa em seios, dentes, cabelo e olhos, falsa na cabeça e falsa o bastante”. Com suas “tonalidades misóginas” (apud POWER, 2014, p. 161, tradução nossa)[3], o poema de Sir Robert Herrick, Upon some women (1891), bem poderia expressar as acusações que inúmeras mulheres tiveram de enfrentar durante toda a Idade Média, acusações que não cessaram de encontrar eco na modernidade e na contemporaneidade.

No clássico A Feiticeira, Jules Michelet conta que eram as mães que denunciavam as filhas por manterem costumes pagãos, punindo-as com o convento ou com a prisão domiciliar no quarto, privando-as do casamento, em se tratando da filha mais velha, e encaminhando a segunda para o ritual em seu lugar (2014, p. 128). Do mesmo modo, a mãe também seria punida se a filha a flagrasse a acender velas para os gnomos ou colocar um pires com mel para as fadas. Para além do pânico causado pelo corpo feminino e suas vinculações intrínsecas com o mal, importa lembrar que se tratava de um período em que uma a cada quatro crianças morria antes de completar um ano, e a expectativa de vida não chegava aos 30 anos. Calamidades naturais, fome, epidemias, guerras, alimentação precária, ausência de condições sanitárias: o corpo era sujeito a deformações constantes, em uma vida precária e efêmera, onde a contingência era lida como destino, e a sorte, uma dádiva dos deuses.

O “fora” (da cidade, do mundo conhecido, da esfera cristã) era um lugar perigoso, e as mulheres estavam associadas a esse fora, ainda não dominado, e, portanto, ainda desconhecido. Claro que o corpo do homem também estava submetido a essas intempéries. Contudo, é a mulher que ganha evidência: ela gesta, ela pare, ela aborta, ela deixa nascer, ela alimenta, ela acompanha ou abandona. A mulher e a terra, corpo selvagem de terra não cultivada. Era preciso purificar esse corpo, porque o caos a que ele nos submete, as sombras em que nos faz mergulhar, ofuscavam a inteligência humana. Era necessário luz, verbo e ordem; a ascensão da razão sobre as trevas, sobre o incompreensível, sobre o mistério. Com a caça às bruxas, o que se busca normatizar é o comportamento de homens e mulheres europeus, tanto na esfera pública como no domínio privado. O que se manifesta, de forma evidente, é uma biopolítica. Não à toa, era o corpo mutilado que proporcionava espetáculos em praça pública. A amputação dos braços, a degola, a forca, o suplício na fogueira, queimaduras a ferro em brasa, a roda e a guilhotina eram as formas de punição que causavam dor extrema e que serviam de alerta à população. A confissão mediante tortura se tornou um dos pilares do inquérito, que se inaugura na Idade Média como forma de pesquisa da verdade, no interior da ordem. Seja na esfera jurídica (vale lembrar que a primeira parte do Malleus Maleficarum é uma peça voltada à orientação dos juízes) ou na religiosa, importava saber quem fez o quê, em que condições e em que momento.

Quando a Igreja se tornou o único corpo econômico-político coerente da Europa nos séculos X, XI e XII, a inquisição eclesiástica foi ao mesmo tempo inquérito espiritual sobre os pecados, faltas e crimes cometidos, e inquérito administrativo sobre a maneira como os bens da Igreja eram administrados e os proveitos reunidos, acumulados e distribuídos. Esse modelo, ao mesmo tempo religioso e administrativo, do inquérito subsistiu até o século XII, quando o Estado que nascia, ou antes, a pessoa do soberano que surgia como fonte de todo o poder, passa a confiscar os procedimentos judiciários. Tais procedimentos judiciários não podem mais funcionar segundo o sistema da prova. De que maneira, então, o procurador vai estabelecer que alguém é ou não culpado? O modelo – espiritual e administrativo, religioso e político, maneira de gerir e de vigiar e controlar as almas – se encontra na Igreja: inquérito entendido como olhar tanto sobre os bens e as riquezas quanto sobre os corações, os atos, as intenções (FOUCAULT, 1999, p. 70). Forma-se, assim, um saber normativo sobre os territórios, os corpos e as almas.

Diante de tal saber é que se formula a pergunta: que existência é essa, na qual o corpo é a prisão da alma e fonte dos perigos espirituais? Que corpo é esse que, ao ser negado, transforma a origem do ser humano em pecado sexual? E por que se encontra no feminino o auge dessa vergonha? De Lilith às Bruxas, a expressão dessa existência/corpo se torna o local de eleição do diabo. Todavia, o desafio definitivo da Idade Média era racionalizar o dogma, distanciando-se do misticismo. O livro-base da inquisição, que levou milhares de pessoas à fogueira, o Malleus Maleficarum (1486), embora reunisse todas as crendices de camponeses alpinos e seus confessores, se apresentava como uma explicação “racional”, cuja finalidade era banir um determinado sistema de relações sociais e conduzir o homem às luzes. Paradoxalmente, a inquisição se afirma como “progressista”, em um percurso histórico que levará à Renascença e, mais tarde, ao Iluminismo. Mas vale advertir que todos esses períodos são compostos de luz e escuridão. A Renascença foi o renascimento não somente das letras pagãs, mas do mistério e do misticismo pagão. Em seu estudo sobre Giordano Bruno e a tradição hermética, Frances Yates revela essa face mais secreta do Renascimento, no qual a figura mística e lendária de Hermes Trismegisto chegava a ser mais popular que o racionalismo de Platão (YATES, 1964, p. 12). A Reforma, por sua vez, foi uma volta não somente ao inesquecível século dos Apóstolos, mas também dos séculos não edificantes dos reis hebreus. A Revolução Cientifica foi entremeada por misticismos pitagóricos e fantasias cosmológicas. E sob a superfície de uma sociedade cada vez mais sofisticada, quantas paixões obscuras e crendices inflamáveis encontramos, às vezes acidentalmente liberadas, às vezes, deliberadamente mobilizadas. A crença em bruxas é uma dessas forças (TREVOR-ROPER, 2007, p. 146).

Nesta altura, vale a pena deter-se um tanto sobre os argumentos e a “lógica” do Malleus Maleficarum. Segundo os autores (KRAMER; SPRENGER, 2014, p. 15):

  1. a) o demônio, com a permissão de deus, procura fazer o máximo de mal aos homens a fim de apropriar-se do maior número possível de almas;
  2. b) e esse mal é feito propriamente através do corpo, único “lugar” onde o demônio pode entrar, pois o espírito do homem é governado por deus, a vontade por um anjo e o corpo pelas estrelas. E porque as estrelas são inferiores aos espíritos e o demônio é um espírito superior, só lhe resta o corpo para dominar;
  3. c) esse domínio se dava pela manipulação dos atos sexuais. Pela sexualidade o demônio pode apropriar-se do corpo e da alma dos homens. Foi pela sexualidade que o primeiro homem pecou e, portanto, a sexualidade é o ponto mais vulnerável de todos os homens.

Não havia dúvidas de que uma pessoa era formada de um corpo e de uma alma, que era compartilhada entre carne e espírito. De um lado, o perecível, o putrescível, o efêmero, o que deve voltar a ser pó. Do outro, o imortal, que, para apagar aquele de carne e osso, faz nascer as utopias, lugar fora de todos os lugares, onde teríamos um corpo sem corpo. Mesmo nos famosos voos noturnos das bruxas, por exemplo, uma rica série de testemunhos de que algumas mulheres e homens saiam à noite invisivelmente, com o espírito, abandonando o corpo para participar em êxtase, de sabás, evidenciavam o conflito: o corpo se tornava um campo de batalha entre deus e o diabo. Este, atraído para baixo, pelo peso, pelas opacidades das substâncias carnais, entra em choque com a aspiração à perfeição celeste. O corpo é considerado perigoso, manifestação do mal que concretamente o corrompe, seja se valendo de suas partes inferiores, origem das pulsões incontroláveis, seja pela doença, pelas purulências das quais nenhum corpo escapa. À salvação do espírito não pode se furtar a salvação do corpo. Sendo o corpo da mulher menos fechado, necessitaria de uma guarda mais atenta.

Seguem os argumentos (KRAMER; SPRENGER, 2014, p. 15):

  1. d) e como as mulheres estão essencialmente ligadas a sexualidade, elas se tornam agentes por excelência do demônio “porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão, portanto, nenhuma mulher pode ser reta”;
  2. e) a primeira e maior característica, aquela que dá todo o poder às feiticeiras, é copular com o demônio. Satã é, portanto, o senhor do prazer.

São muitas as teorias que defendem que era necessário um controle estrito do corpo durante a época medieval pelas seguintes razões: a) a necessidade da criação do corpo dócil do futuro trabalhador, que alienado do seu trabalho, não se rebelará, permitindo, assim, que os princípios de sistema capitalista fossem forjados no seio do feudalismo; b) a ameaça ao poder médico, que já se instaurava nas universidades no interior do sistema feudal, pois que eram as parteiras que viajavam de casa em casa, de aldeia em aldeia. As curandeiras eram populares e cuidavam de todas as doenças de todos. Acabam por formar organizações pontuais (comunidades) que, ao se juntarem, estruturavam vastas confrarias, trocando entre si os segredos da cura do corpo e, não raras vezes, da alma. Vale dizer que, mais tarde, foram essas mulheres que participaram das revoltas camponesas que precederam a centralização dos feudos. Estes, mais tarde, vieram a dar origem às nações. A partir do final do século XIII, com a finalidade de se perpetuar, o poder disperso e frouxo do sistema feudal é obrigado a se centralizar, a hierarquizar e se organizar com métodos políticos e ideológicos mais modernos. A noção de pátria aparece nessa época. Tanto o catolicismo quanto o protestantismo se mostram ferramentas decisivas para a constituição desse poder centralizado.

Essa nova ordem, que demora séculos para se estabelecer pela Europa, concentra todos seus esforços em abolir o mistério, em recusar o desconhecido, em condenar o inexplicável, estabelecendo, aos poucos e continuamente, padrões normativos de comportamento como modo de conjurar o caos. A função da curandeira, da parteira, daquela que ouvia e cuidava da comunidade, e a quem a comunidade recorria com respeito e medo, foi também centralizada, reduzida, condenada e queimada na figura bruxa-herege. Séculos após se extinguirem as piras que arderam mundo afora, queimando mulheres e hereges, a bruxa se tornou um personagem mítico fantasioso, mais ligado à irrealidade do que a uma força real.

Mesmo os textos que buscam condenar o preconceito que as levou a morte se mostram céticos ao sair em defesa dessa figura, que é caracterizada como mulher comum, símbolo do matriarcado. Um exemplo claro é o livro de Silvia Federici, Calibã e as Bruxas, no qual se trata da importância do corpo feminino para que o regime capitalista fosse instaurado (2020). Em meio a um período cheio de revoltas, por conta de cerceamento e apropriação de terras, a autora evidencia como as mulheres foram as mais prejudicadas, e coloca a caça às bruxas como o grande evento responsável por aniquilar a participação, a força e a resistência femininas, comuns nas comunidades praticamente do mundo inteiro. Ela também afirma que as mulheres foram aquelas que ofereceram grande resistência ao capitalismo desde então. Mas não, em nenhum momento em seu livro ela afirma que bruxas existiram factualmente. Eram mulheres, e sua força de luta era o seu principal encantamento. E isso também é verdade. Mas também é fato que o Malleus Maleficarum reuniu em suas páginas um apanhado de crenças camponesas que atravessaram séculos, e eram a expressão de uma nova mitologia que não só se destacava, como era também endêmica nas áreas montanhosas da Europa Católica.

Foi nessa região que a Bula Papal (1484) e o Martelo das feiticeiras (Malleus Maleficarum, 1486) encontraram base sólida para narrativas em que mulheres atravessavam portas, confundiam as pessoas, tornavam-nas reféns de seus afetos e eram a corporificação, a presença do assombro/maravilhamento entre os homens. Eram figuras capazes de atravessar períodos de grande ressentimento, raiva, dor e injustiças, e essa capacidade as tornava grande ameaça. Olhando para a descrição desse corpo da bruxa nos deparamos com uma determinada existência banida: aquela que se constitui fora dos espaços domesticáveis, um corpo criado a margem, cuja individualidade se mostra dinâmica e intercorpórea, constituída por forças que se definem não apenas por seus encontros e/ou choques ao acaso, mas por relações e processos de composição e decomposição, tal como dita uma maior ou menor conveniência.

Quando se trata do corpo, é inevitável dirigir-se ao mais frágil. O discurso não resiste: polegada por polegada, traço a traço, somos levados ao redescobrimento da substância corruptível e mortal, a cor do sangue, a densidade dos tecidos, a consistência da pele e tudo mais que vai perecer e ir para o caixão, ser corrompido pelos vermes. Estar em contato com o corpo humano durante a Idade Média era experimentar o maravilhoso e o cosmos. Maravilhoso por tratar de algo perante o qual se arregala os olhos, que exerce sobre o espírito uma evidente sedução. Cosmos porque tanto do ponto de vista do diagnóstico quanto do tratamento, o corpo era visto com um microcosmo, a tal ponto que, vencer uma guerra era insuficiente para legitimar o poder de um imperador. O destino era determinado pelos planetas. O maravilhoso era produzido por forças sobrenaturais, uma multiplicidade de forças agindo por detrás de um mundo de objetos e ações. A matéria que constituía os planetas, também nos constituía, os quatro humores que alimentavam o corpo remetiam ao simbolismo da terra e seus elementos: sangue (ar), cólera (fogo), fleuma (água) e melancolia (terra). Do equilíbrio do sangue, da fleuma, da bile negra (melancólico) e amarela (cólera) dependia a regulação das três partes principais do corpo: fígado, coração e cérebro. A qualidade dos humores (sanguíneo, fleumático, colérico, melancólico) se estruturavam por pares de oposições: seco-úmido, frio-quente, delgado-grosso, doce-amargo. Assim o sangue podia ser quente ou úmido e estava ligado a primavera. A bile amarela poderia ser quente ou seca e estava ligada ao verão, a bile negra podia ser seca ou fria e estava ligada ao outono e a fleuma podia ser fria ou úmida e estava ligada ao inverno. O estado de saúde dependia da exata proporção e perfeita mistura dos quatro humores. Quando em harmonia o homem teria saúde. Adoeceria, contudo se houvesse falta ou excesso de um desses humores ou quando um destes se separasse do corpo e não se unisse aos demais. As funções nutritivas dependiam da relação de simpatia com determinados órgãos. Em um mundo extremamente material (GUMBRECHT, 2004, p. 21), onde a vida borbulhante obedecia a princípios universais de atração e repulsa, geração e degeneração, quando uma pessoa se encontrava enferma, haveria uma tendência natural do corpo para a cura, que encontraria meios para corrigir a desarmonia dos humores (discrasia), restabelecendo o estado anterior (eucrasia). Quatro métodos de tratamento surgiram para reequilibrar os humores: sangria, purgativos, eméticos e clisteres.

Curiosamente, estes mesmos métodos foram usados como tortura durante a inquisição. Se a abertura ao “fora” tornava o corpo capaz de se autorregular (algo não dissociado da “natureza”, e por isso facilmente tentado — o apelo à carne é um apelo a certa “natureza humana” animal) essa mesma brecha era entendida como falha, corrupção, por onde a igreja entraria ao introduzir uma nova noção de homem no interior do corpo humano. Não por acaso, um dos primeiros passos da investigação de bruxaria consistia na busca pela marca do diabo no corpo dos acusados. Um sinal de nascença, um ponto anestesiado; na busca por uma marca, os inquisidores a criavam: a natureza as fez feiticeiras. Seria uma tendência própria da mulher, de seu temperamento. O homem caça e combate. A mulher trama, imagina, engendra. A execução pública de centenas de mulheres é a produção da marca, da identidade social e sexual, de um feminino e de um masculino, de um corpo, uma máquina desejante que, por desejar, é suscetível ao mal e pode levar o mundo inteiro à danação.

 

The Witch e o pacto demoníaco

 

Como esse corpo perseguido, monstruoso e aberto a uma exterioridade perigosa da Idade Média irá aparecer a um olhar contemporâneo? Por certo, a herança cultural daqueles tempos é poderosa, e essas representações não deixarão de comparecer no imaginário social através dos séculos. Todavia, ele também passa, no presente, a ser fonte de potências libertárias e de contestação de normais sociais. No horizonte do imaginário audiovisual, esse corpo, espetacular por sua própria natureza, irá ser exibido a partir dessas duas vertentes aparentemente contraditórias.

As bruxas e a bruxaria são um tema bastante antigo para o cinema. Häxan, de Benjamin Christensen (1922), talvez seja o primeiro exemplo, e certamente uma influência fundamental para o tudo que veio em seguida. Curiosamente, o elemento mais perturbador do filme parecia ser seu realismo cru, sua recriação detalhada do imaginário da bruxaria e sua apresentação em imagens chocantes com uma finalidade supostamente documental. Christensen se via como um racionalista, mas ao mesmo tempo se sentia atraído por temas sensacionalistas (STEVENSON, 2006, p. 60). Uma mescla de êxito e pânico cercou o filme em seu país de origem, a Dinamarca, ao passo que nos países de língua inglesa, onde foi proibido por vários anos, apenas o segundo elemento se manifestou por muito tempo. De todo modo, foi rapidamente esquecido e, alguns anos depois, já se acreditava que não houvesse mais cópias sobreviventes. Em um golpe de sorte, contudo, descobriu-se um copião de excelente qualidade em um armazém de Estocolmo. Em 1941, no auge da Segunda Guerra Mundial, o filme foi então reexibido – e desta vez recebido como obra muito a frente de seu tempo. Em uma Dinamarca ocupada pelos nazistas, o filme podia facilmente ser lido como uma mensagem sobre multidões histéricas perseguindo uma parcela da população tida como responsável pelos males da sociedade (STEVENSON, 2006, p. 98). Se o corpo da bruxa fora antes fonte de malignidade a ser controlado e disposto, agora eram outros os corpos marginalizados e perseguidos em campos de concentração.

Em tempos recentes, foi provavelmente The Blair Witch Project, produzido como falso documentário, o filme que resgatou a temática da bruxa com maior êxito de público. Ali, todavia, nem a identidade feminina nem o corpo da bruxa constituem questões centrais. O filme parece simplesmente herdar o imaginário medieval em sua forma mais maniqueísta, com a bruxa, essencialmente invisível, figurando um mal impalpável que consome toda espécie de vida. Nesse sentido, ele se enquadra com perfeição nas representações tradicionais de uma teratologia feminina, conforme descrito por Barbara Creed em seu estudo sobre a monstruosidade feminina: “capaz de atos monstruosos […] e crimes terríveis: canibalismo, assassinato, castração de vítimas masculinas e o advento de desastres naturais” (2007, p. 2). Porém, é somente mais tarde, em um conjunto de filmes lançados nos últimos 10 anos, que a materialidade orgânica do corpo feminino irá tornar-se problema essencial e fonte de estranhas forças libertárias, particularmente nas três obras que serão analisadas nas linhas seguintes.

Em primeiro lugar, importa notar que a bruxaria se manifesta como uma realidade perturbadora em todos esses filmes. Não se trata somente de uma crença na existência bruxa, mas de como essa crença transborda para o mundo, produzindo um encontro entre as esferas do natural e do sobrenatural. Se existe sempre um tom de ambiguidade, ela tende a resolver-se pela via do sobrenatural. Por exemplo, em The Witch, (2015) de Robert Eggers, as imagens de mulheres voando em um sabá, ou o diálogo de Thomasin (Anya Taylor-Joy) com o bode Black Phillip, ou as cenas da velha mulher sugando o sangue de algum animal ou em meio a um ritual satânico, nos são apresentadas como fatos perfeitamente cabíveis dentro do universo narrativo. Quando Thomasin aceita assinar o livro do pacto demoníaco, empenhando a própria alma, abre-se para ela a possibilidade de mudança, de alcançar realidades para além daquelas que lhe são socialmente determinadas.

 

Thomasin: “Black Phillip, eu o invoco para que fale comigo. Você compreende o meu inglês?”

Black Phillip: “O que você quer?”

Thomasin: “O que você pode me dar?”

BP: “Você gostaria de sentir o gosto da manteiga? Um vestido bonito? Você gostaria de viver deliciosamente?”

Thomasin: “Sim”.

BP: “Você gostaria de ver o mundo?”

Thomasin: “O que você quer de mim?”

BP: “Você está vendo o livro a sua frente? Tire suas vestes”

Thomasin: “Não sei escrever meu nome”.

BP: “Guiarei sua mão” (THE WITCH, 2015).

 

O diabo pede a Thomasin a entrega da alma em troca de um corpo capaz de sentir prazeres. O destino da jovem, a partir daquele momento, deixa de ser determinado e passa a ser negociado. Uma vantagem significativa, já que falamos de uma menina que, por apresentar os primeiros indícios de mulher, seria negociada pelo pai a outra família em troca de dotes: “Nossa filha já traz o sinal de sua condição feminina… é madura o bastante. Ela precisa servir outra família” – é este o argumento de Katherine (Kate Dickie), mãe de Thomasin, tentando convencer William (Ralph Ineson), o patriarca da família. De fato, o próprio Eggers lê a conclusão do filme como um final feliz, dado que “foi a primeira escolha que ela [Thomasin] realmente pôde fazer” (apud ZWISSLER 2018, p. 7). No entanto, mesmo esse desfecho não é totalmente linear. Pode-se perguntar até que ponto se tratou de uma escolha real ou de uma entrega a um delírio motivado pela constante opressão e alienação do feminino.

A história se passa na Nova Inglaterra, na década de 1630. A família de Thomasin (mãe, pai e cinco filhos, entre eles um bebê) é banida de uma vila de produção agrária. O julgamento foi breve, toda a comunidade parecia esperar que o patriarca William (Ralph Ineson) se arrependesse de algo que não fica claro. Certo é que o filme nos situa no mundo de homens orgulhosos que decidem sobre o destino de mulheres. A precariedade se desenha: o milho não vinga, a caça é fracassada, e o bebê é roubado por algum animal que o arrasta para dentro da floresta próxima da qual a família se estabeleceu. Era o castigo divino, deus pesando as mãos sobre os homens que pecam. Mas quem seria o agente do pecado? Diante desse cenário seco, a presença de Thomasin se torna hipnotizante, instauradora de estados que conjugam inocência e malícia, alívio e perigo — inevitavelmente a desconfiança se torna o vapor de sua “doce” submissão, seu corpo ganha significados que vão além de seus gestos e ações e ela se torna responsável pelo que o outro sente, o pecado do outro, se torna seu pecado e ela sua tentação. A voluptuosidade do corpo da adolescente (que não passa despercebida pelo próprio irmão Caleb) evidencia o cansaço da persistência de sua mãe, Katherine, que, aos poucos e sem parar, resseca-se, ressente-se e enlouquece. Quando a Bruxa aparece, sempre em silêncio, sem nunca dizer nada, mas alterando e ameaçando toda a narrativa, sua presença põe em choque beleza e um corpo que perece, a engenhosidade-astúcia e a decrepitude. Ela é o preço que se paga por ser vulnerável e ainda assim desejar ter nas mãos do próprio destino.

O filme está mergulhado em uma atmosfera surreal, construída em uma combinação entre a trilha sonora e a montagem elíptica. Na medida em que a história avança e vemos a família se arruinar, dessas ruínas emergem duas potencialidades, a da abundância e do desperdício. Quando a Bruxa aparece, o corpo perene sofre, não se furta às marcas e mesmo desestabilizado persiste, insiste de joelhos na existência, como na cena em que William percebe que o orgulho foi seu pecado e se coloca em oração. William é atacado pelo bode Black Phillip e morre sob os escombros da pilha de lenha que desaba. Quando a Bruxa surge, ela faz os personagens desejarem tudo ao mesmo tempo, não estamos mais no mundo do possível. Assim, louca de dor, de amor, de desejo, Katherine tem de volta em seus braços o bebê que a floresta lhe havia tomado, trazido pelo filho Caleb, já morto, e passa a noite amamentando um corpo que lhe devora os seios.

 

Gwen: tornar-se mulher

 

Um segundo aspecto que perpassa os enredos dos três filmes é o destaque dado para determinadas presenças femininas, expressas especialmente no par mãe e filha. Em Gwen (2017), o primeiro filme do roteirista e diretor inglês William McGregor, a personagem que dá o título ao filme, Gwen, (Eleanor Worthington-Cox), é uma jovem que vive com a mãe, Elen (Maxine Peake), e sua irmã mais nova, Mary (Jodie Innes), em uma fazenda, na região montanhosa de Snowdonia, no País de Gales. A trama se passa em 1855, quando a mineração expulsa violentamente a agricultura como forma predominante de vida. São três mulheres, sozinhas, à espera do pai-marido que não retornará da guerra. O dono da Mineração as pressiona, assim como fez com outros camponeses, para que as terras sejam vendidas para a exploração de minério. Os que se recusam a ceder, veem seus rebanhos inteiros aparecem repentinamente mortos, as portas de suas casas são amaldiçoadas e/ou marcadas e/ou simplesmente os moradores recebem um aviso, quando o coração de um animal é pendurado nas portas da entrada. Em última instância, camponeses começam a ser assassinados, e por mais que exista sangue nas paredes da casa onde os corpos são encontrados, assim como restos de comida ainda nos pratos, mostrando que a família foi surpreendida pelo acontecimento, a comunidade local aceita atribuir as mortes à cólera que assola a região.

A figura de Elen, mãe de Gwen, é assombrosa pela complexa composição: submissão, artifício e autossacrifício. Em estado de saúde deteriorado ela atravessa com a família longas distâncias, se submetendo a um clima severo, com a finalidade de mostrar à comunidade local que participa e, portanto, respeita seus rituais religiosos, sendo um deles o comparecimento às missas. Ela sabe que não pode permitir que duvidem de sua retidão de caráter e de sua virtuosidade religiosa. Por outro lado, quando sua porta é marcada pelos homens da mineradora, ela esmaga ossos de alguns carneiros – que foram queimados com a intenção de evitar que a cólera se alastrasse – no portão de entrada de seu território, em um ritual tipicamente pagão. Na medida em que sua saúde se deteriora e as crises epiléticas ficam mais frequentes diante do enfraquecimento do corpo, ela recorre à sangria, técnica muito conhecida durante a Idade Média tanto pelos médicos, para aliviar a pressão, como pelos pagãos, que criam em seu poder de afastar espíritos malignos.

A realidade que Elen enfrenta é muito dura e é preciso preparar Gwen para lidar em breve com ela. Há três cenas em que isso fica claro: a primeira é quando Elen pede a Gwen que amontoe os corpos das ovelhas e as queime, sem aproveitar nada, nem sequer a lã. A segunda, quando ela quer que a filha sacrifique o cavalo que se perdeu e retornou machucado, a fim de lhe aproveitar a carne. A terceira é quando Gwen observa a mãe espetar o dedo com uma agulha e usar o sangue para pintar o rosto a fim de lhe dar uma aparência mais saudável antes de irem à cidade. É preciso um corpo capaz de beleza e um corpo capaz de crueldade para sobreviver em uma região onde a natureza é impiedosa, mas não se compara à sordidez humana. Natureza, mulheres e feminino selvagem se aliam para atravessar o trágico acontecimento iminente. O contraste é poderoso entre a delicadeza e força das mulheres, a potência da paisagem, e a realidade com a qual não há como negociar. Tornar-se mulher implica em aprender a lidar com cesse cenário. A cena em que Gwen tem os cabelos lavados pela mãe expressa bem isso, a intimidade de tudo o que não pode ser dito escapa de um feminino abundante, misterioso, delicado e belo como os cabelos sendo lavados, revelando o processo de se tornar mulher que atravessa todo o filme. A mãe de Gwen termina queimada pelos homens da aldeia, mas Gwen consegue fugir com a irmã.

 

A monstruosidade da natureza: Hagazussa

 

O terceiro ponto que é comum aos três filmes é a presença de uma natureza selvagem como figura constitutiva da estrutura corporal que junta o corpo condenado-banido, o corpo medieval e o corpo feminino na composição do corpo da bruxa. Se a natureza foi frequentemente pensada como potência feminina de acolhimento e geração de vida, em seus aspectos mais destrutivos e violentos, ela figura, nesses filmes, aquilo que não pode ser contido nem controlado. A bruxa, que escolhe habitar no meio da floresta, possui, assim, uma relação vital com essa dimensão selvagem e perigosa do mundo natural. Para Barbara Creed, se existe um papel monstruoso nos filmes de horror que cabe particularmente às mulheres, esse é o da bruxa (2007, p. 73); ela foi representada, no cinema, como um “implacável inimigo da ordem simbólica”, ou seja, da cultura enquanto tal. Mais que isso, “ela está mais próxima da natureza que o homem e pode controlar suas forças, como tempestades, furacões e chuvas torrenciais” (CREED, 2007, p. 76).

Em Hagazussa (2017), essa relação visceral com a natureza desempenha papel central. O título desse filme do diretor e roteirista alemão Lukas Fiegelfeld (também seu primeiro trabalho, como nos dois casos anteriores) vem do alto alemão, indicando o nome de um espírito feminino da mitologia nórdica que passeia pelas fronteiras entre os mundos dos deuses e dos homens. Foi dessa palavra que derivaram termos posteriores ligados a bruxas, como as palavras Hag ou Hex, comumente usados no início do século XX. Se referia também às mulheres que viviam no limite que separava terras cultivadas da floresta selvagem, recolhendo ervas e outras plantas enquanto os homens faziam o trabalho de plantio e colheita. A história se passa em um vilarejo remoto, situado nas montanhas dos Alpes bávaro-austríacos durante o século XV. Se divide em quatro partes: Schatten – Sombra, Horn – Chifre, But – Sangue e Feuer – Fogo.

Na primeira parte do filme, seguimos a menina Albrun (Celina Peter), acompanhando sua Mutter (Claudia Martini) em um cenário branco de neve, severo de frio. Já nas primeiras cenas, as duas moças cruzam com um ancião da aldeia que lhes adverte: “estamos na 12ª noite, cuidado para que a Perchta não te pegue”. Perchta não tem uma origem especifica; é provável que derive do alto alemão Beraht e possivelmente relacionado a Berhtentag, palavra medieval para o feriado da Epifania. Sua etimologia pode apontar tanto para o significado de “a brilhante” como remeter ao verbo antigo pergan, significando “oculto” ou “coberto”.[4] Perchta era um mito que fazia parte dos hábitos e da religião antiga antes da chegada do cristianismo à região destes países de língua germânica. Essa figura feminina podia manifestar-se entre os aldeões nos meses de novembro a janeiro. Ela sempre trazia mudanças e, num tempo em que a crueldade da natureza era uma realidade muito concreta, as mudanças podiam ser fatais.

Foi o que aconteceu com Mutter. Não se sabe se ela encontra Perchta em algum dia após o aviso do velho aldeão, mas num dado momento ela para em silêncio e cai em meio a um caminho de neve. Albrun vem atrás dela juntando galhos para colocar na lareira e garantir aquecimento para a noite rigorosa. Na sequência, a menina se vê diante da peste negra, que se alastra pelo corpo da mãe, inflamando-lhe os gânglios linfáticos, fazendo emergir bulbões nas axilas e virilhas, produzindo constante febre elevada e fortes dores (cabeça e generalizadas pelo corpo), com calafrios e náuseas que a impedem de se alimentar. O delírio e a confusão mental trazidas pela doença fazem a mãe agir como um animal, cheirando e ingerindo o sangue menstrual de Albrun e, por fim, resultam na fuga descoordenada de Mutter para o interior da floresta, onde a filha a encontraria dias depois, morta, imersa num lago com serpentes deslizando e passeando pelo tronco.

Em seguida, vemos uma Albrun já adulta (agora representada pela atriz Aleksandra Cwen), que se torna pastora de cabras, e herda da mãe, além da solidão, a maldição que os membros da aldeia lhe atribuíam: bruxa, sendo achincalhada durante seus afazeres cotidianos, condenada pelo pastor, que relaciona o sofrimento e as doenças como punição divina a seu modo de vida isolado. Esse é um período histórico em que judeus e pagãos sofrem com a pecha de que não carregam a luz divina no coração, sendo associados à natureza e animalidade. A camponesa Swinda (Tanja Petrovsky) ganha a confiança de Albrun, ao mostrar-se gentil e atenciosa, mas secretamente apenas prepara as condições para que um aldeão se aproveite da jovem, estuprando-a enquanto lhe sussurra ao ouvido: “É repugnante como vocês fedem. Seu fedor de podre”. Fome, peste bubônica, silêncio, fauna e flora são personagens ativos da trama. Albrun urina no córrego que leva água à aldeia, a fim de transmitir aos aldeões a doença-castigo que se abateu sobre sua mãe e sobre seu sangue. Com a filha-bebê nos braços, ela assiste a alguns corpos sendo carregados em carroças para os locais de incineração. Estaria ela acreditando poder transmitir a maldição que se abatera sobre si, tal qual lhe disse o pastor na igreja adornada de ossos humanos? Em planos-detalhe, vemos cogumelos com vermes próximos a carcaças de animais. A degradação, a ruína e corrosão são elementos continuamente traduzidos por imagens nas quais o grotesco se alia a uma estranha (e alienígena) beleza. O erotismo transborda na cena em que Albrun leva um cogumelo a boca, o silêncio de vozes humanas e os sons naturais ao redor fazem da película uma expressão da presença humana potencializada pela natureza. Albrun afoga a filha no lago, submergindo junto ao bebê que chora. Sua visão fica turva, enquanto as folhas sob a água, o tecido de sua roupa, o sangue, e as percepções perturbadas de Albrun se misturam num lodo existencial profundamente material. Nada aqui é abstrato.

De volta à sua casa, Albrun se depara com a filha morta entre suas vestes molhadas. Ela então a cozinha e come, de forma antropofágica. Nada, porém, é inteiramente claro. Ela vomita, tem uma epifania, grita, vomita de novo e caminha até uma colina. Finalmente, quando o dia começa a clarear, seu corpo se autoincinera. Há uma espécie de concretude vital, construída lado a lado com a paisagem selvagem, com que a personagem Albrun e, antes dela, sua mãe, são capazes de atravessar a crueza da doença, da injustiça, do perecimento do próprio corpo para alçá-las a um patamar além ou aquém do humano.

 

Considerações finais

 

Vale lembrar que é na região montanhosa da Europa Católica, os Alpes e os Pirineus, que a “a ascensão da grande mania de bruxas” tem início. Hagazussa faz menção, assim, a uma região onde as crenças eram endêmicas e, por isso, dois séculos antes das publicações da Bula Papal de 1484 e do Malleus Maleficarum, de 1486, os dominicanos já eram os maiores inimigos de qualquer ato de fé que afrontasse os dogmas católicos. E a luta da Igreja Católica se inicia contra os grandes heréticos do século XII: os albigenses do Languedoc e dos valdenses dos Alpes. Ambos professavam doutrinas que iam contra alguns princípios basilares da igreja, como a crença em um deus único ou insistir nos votos de pobreza, o que tornava evidente a ostentação eclesiástica. Mas se o catolicismo desprezava o corpo, dizendo que o que importava era o reino divino, os reformadores pregaram o domínio sobre corpo com extensão do trabalho de domínio sobre a natureza, a ascese intramundana, como expressão da benção divina.

Seja como for, católicos ou/e reformadores consideraram condenável o corpo bestializado da bruxa, cuja existência não separava dor e prazer, exposta constantemente ao objeto de corrupção, que rapidamente era transformado em ocasião de pecado, aos quais pagãos e heréticos se abandonavam. Assim, influenciados pela natureza selvagem ao seu redor, essas pessoas não se esquivavam da própria devassidão, das tentações do mundo, e mesmo de se submeter ao poder de satã. Talvez por isso, os católicos tenham dito que na cruzada contra esses grandes hereges tenham encontrado os rudimentos de uma nova heresia e, a partir dessa data, inquisidores insistiram para que o papa reconhecesse a bruxaria como heresia teológica.

Em um choque brutal com essa realidade em trânsito, as bruxas invocadas nos filmes nos mostram não haver espaços para romantismo que não seja esse, cuja beleza avassaladora afirma aquilo que persiste, mesmo quando se entrega ao declínio, à perda das próprias características, perda do próprio nome, daquilo que se deixa ser tomado, atravessado por um estranhamento radical. Ao se confrontar com o poder que determina suas vidas, esse feminino, formado por três duplas de mulheres, se deixa ser atravessado por uma natureza selvagem, composta por paisagens de frio severo e vento cortante, que exige corpos atentos, porque a vida da floresta não irá pedir licença ao humano para passar, mas acontecerá a despeito de nossa existência.

Assim, essas mulheres se confrontam com a animalidade da maternidade e a perda de suas identidades no sentido mais radical, daquilo que as determinava como sujeitos, como humanas, como corpo vivo levado ao limite de não tocar mais o chão, de se autoincinerar ou de enfrentar a realidade em sua forma mais crua. As feiticeiras se manifestam, assim, como ruptura radical da normatividade, como abertura ao novo e ao inesperado, como fontes de potência criativa (mesmo quando esta nasce da destruição). Do animado ao inanimado, a bruxa, nesses filmes, é o elo perdido entre o corpo e o espírito, entre os que sonham com mundos por vir, ainda inimagináveis, e os que só conseguem sonhar consigo o próprio reflexo.

 

Referências

 

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BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da Magia. Feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal do Século XVI. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.

 

CREED, Barbara. The Monstrous-Feminine: Film, Feminism, Psychoanalysis. London, Routledge, 2007.

 

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. São Paulo, Elefante, 2020.

 

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1999.

 

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Production of Presence: what meaning cannot convey. Stanford, Stanford University Press, 2004.

 

GWEN. Direção: William McGregor. Produção de Hilary Bevan Jones. Inglaterra: AMC Networks, 2018. 1 DVD.

 

HAGAZUSSA. Direção: Lukas Feigelfeld. Lukas Feigelfeld. Alemanha: Forgotten Film, 2017. 1 DVD

 

KRAMER, Henrich; SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos, 2014.

 

LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa, Edições 70, 2017.

 

LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Observações sobre o corpo e ideologia no Ocidente Medieval. Recife, Editora Titivillus, 2005.

 

MICHELET, Jules. La Sorcière: the witch of the Middle Ages. London, Forgotten Books, 2018.

 

POWER, Andrew J. Heaven and Hell in Robert Herrick’s Body of Work. Modern Humanities Research Association, New York. v. 44, p. 156-173, 2014.

 

STEVENSON, Jack. Witchcraft Through the Ages: the Story of Häxan, the World’s Strangest Film and the Man who Made It. Farleigh, FAB Press, 2006.

 

THE WITCH: a New England Folktale. Direção: Robert Eggers. Produção de Daniel Beckerman. Estados Unidos: A24, 2015. 1 DVD.

 

TREVOR-ROPE, Hugh. A crise do século XVII. Religião, a Reforma e Mudança Social. Rio de Janeiro, Topbooks Editora, 2007.

 

YATES, Frances. Giordano Bruno and the Hermetic Tradition. London, Routledge, 1964.

 

ZWISSLER, Laurel. ‘I am That Very Witch’: On The Witch, Feminism, and Not Surviving Patriarchy. Journal of Religion and Film, Omaha, v. 22, n. 3, p. 1-33, dez. 2018.

 

Erick Felinto

Doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no Rio de Janeiro, RJ, Brasil, com estágio de pós-doutoramento sênior (CAPES) na Universität der Künste Berlin; mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no Rio de Janeiro, RJ, Brasil; especialista em Línguas e Literaturas Românicas (ABD) pela Universidade da California, em Los Angeles, USA; graduação em Comunicação Social pela UERJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); pesquisador do CNPq e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UERJ.

 

Sindia Bugiarda

Mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), no Rio de Janeiro, RJ, Brasil; especialista em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL); graduada em Jornalismo pela Universidade Santa Cecilia. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integra o grupo de pesquisa “Imaginários através dos Tempos”, do Laboratório de Pesquisa sobre Imagem e Imaginário (Labim), sob a direção dos professores Cintia SanMartin e Erick Felinto (UERJ).

 

Endereço para correspondência

Erick Felinto

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Faculdade de Comunicação Social

Rua São Francisco Xavier, 524

Maracanã, 20550-900

Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

Sindia Bugiarda

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Faculdade de Comunicação Social

Rua São Francisco Xavier, 524

Maracanã, 20550-900

Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

[1]Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

[2]Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

[3] Do original: False in legs, and false in thighs; False in breast, teeth, hair, and eyes; False in head, and false enough.

[4] Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Perchta. Acesso em: 10 mar. 2022.